A Universidade e os clássicos no século XXI

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Por Jorge Henrique Bastos, publicado em Jornal GGN – 

O poeta Ezra Pound sonhava com o dia em que todo o seu país lesse Homero. A utopia poética do norte-americano parece nortear alguns projetos pelo mundo

Na era dos gadgets que povoam o cotidiano do século XXI, quando qualquer pessoa possui um tablet, computador ou celular, pode parecer ficção, mas o ensino de línguas antigas  como o grego e o latim ainda conquista muitos jovens. No Brasil, a cultura clássica fez parte da formação e continua bem atuante, se tivermos em conta a realidade e a sua presença nas universidades brasileiras. No século XIX, o estado do Maranhão chegou a ser apodado como a “Atenas Brasileira”, e o imperador D. Pedro II cultivava a paixão por idiomas antigos. Ao longo do tempo, o país procurou manter a admiração viva pelos clássicos.

A expressão dada ao estado nortista batizou a geração literária que reuniu escritores como Gonçalves Dias, Sousândrade e Odorico Mendes (1794-1864), entre outros. Este último, poderia ser designado como nosso patriarca da tradução, já que verteu para nossa língua autores nucleares da tradição greco-latina, como Virgílio e Homero. Suas traduções são até hoje alvo de estudos e pesquisas.




Foi ainda no Maranhão que surgiu outro tradutor, já no século XX, que nos legou um genuíno tesouro literário. Trata-se de Carlos Alberto Nunes (1897-1990), criador de versões de Homero, Virgílio e Platão, do qual traduziu para o português a obra completa. Tais obras são reeditadas há anos e amplamente analisadas por diversas gerações de leitores.

Essa herança transcultural mantém a força em vários pontos do país. Se observarmos os catálogos de editoras como Unesp, Edusp, Martins Fontes, Editora 34, Ateliê, só para citar algumas, verificar-se-á que títulos clássicos despontam aí, revelando que ainda há interesse do público por obras da antiguidade.

Isso demonstra que o Brasil conta com um número significativo de tradutores do grego e do latim. Tal evidência é corroborada por inúmeros personagens que atuam em diversas frentes, tanto como professores ou como tradutores, e nos ajudam a delinear o cenário da realidade existente.

Um pormenor esclarecedor sobre esses estudos é o fato de que o primeiro doutorado em Letras Clássicas só foi defendido no país em 1961, por José Cavalcante de Souza, outra figura precursora e um dos responsáveis em formar estudantes ao longo de décadas, os atores principais da renovação que vem ocorrendo.

Nascido em 1984, o poeta, tradutor e professor de Língua e Literatura Latina na Universidade Federal do Paraná, Guilherme Gontijo, acredita que o interesse tem vindo a se consolidar nos últimos vinte anos, com o surgimento de uma nova geração. Conforme diz, “Desde os anos 90, houve um enorme crescimento no número de classicistas tradutores com visão literária. Antes disso, a prática era cindida: os acadêmicos faziam apenas traduções formais, filológicas, por vezes ilegíveis; enquanto poetas e escritores faziam as traduções palatáveis e literárias, por vezes com erros. Com essa guinada, houve um aumento de traduções e de textos bilíngues no mercado. Eu me vejo como parte da segunda geração dessa estirpe”.

O professor Rafael Brunhara da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), partilha dessa perspectiva “O que penso é que ocorre, a partir dos anos 80, a consolidação de um processo de formação de novos especialistas nos mais diversos centros acadêmicos do país, trazendo uma renovação nos estudos de Letras Clássicas que certamente se reflete nos meios editoriais. Acho que sempre houve um espaço editorial, mas o aumento do número de profissionais especializados para ocupar esse espaço é algo dos últimos anos e está bastante vinculado ao crescimento dos programas de graduação e pós-graduação em línguas clássicas no país”.

Nesse período, um pouco por todas as regiões brasileiras, os quadros de professores aumentaram, houve a revitalização de departamentos e a criação de novos cursos, gerando um elenco de docentes cujos trabalhos só agora começam a arrebatar a atenção e a expor os resultados.

A oferta diversificada desses profissionais proporcionou aos leitores uma multiplicidade de obras, algumas vezes com duas ou três versões do mesmo livro, como é o caso recente da publicação, em simultâneo, de Édipo Rei, com traduções de Márcio Mauá Chaves, Leonardo Antunes e Lilian Sais, respectivamente pelas editoras Hedra, Todavia e EdiPro, ambas publicadas em 2018.

Mas num momento de crise como agora, convém considerar os desafios, já que suplantaram as dificuldades com muito trabalho, e agora podem enfrentar novos obstáculos bem palpáveis. Para Gontijo, é necessário encarar “O descaso geral, a incompreensão de uma sociedade utilitarista que demanda resultados e lucros de qualquer coisa. É comum ouvir a pergunta: ‘Mas por que você foi fazer isso? Latim e grego serve para alguma coisa?’ Pode parecer engraçado, mas essa pergunta revela as batalhas constantes que temos para marcar a importância desses estudos perante a sociedade, as universidades, os ministérios, etc.”

A realidade brasileira é bem expressiva, quando observamos que os estudos se propagaram de maneira considerável, conforme Rafael Brunhara assinala “O mundo dos estudos clássicos no Brasil é amplo e acho importante mencionar outros polos, sobretudo na região nordeste: a UFC (Universidade Federal do Ceará) tem uma tradição bem sólida nos estudos clássicos; a UFPB (Universidade Federal da Paraíba) e a UFBA (Universidade Federal da Bahia)  oferecem graduações exclusivamente em Letras Clássicas. O curso da UFPB é relativamente recente – sua fundação data de 2009 – mas é impressionante pelo seu rápido crescimento, logo tendo se tornado uma referência a ser considerada”, acentua o professor gaúcho.

Com efeito, embora as vidas destes especialistas gravitem em torno do mundo remoto da antiguidade clássica, os seus GPS estão ativos em relação às ferramentas da contemporaneidade. A UFRGS, por exemplo, disponibiliza cursos gratuitos on-line, como o Lúmina, sobre poesia grega. E as iniciativas não ficam por aí.

Clássicos para todos

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O poeta Ezra Pound sonhava com o dia em que todo o seu país lesse Homero. A utopia poética do norte-americano parece nortear alguns projetos pelo mundo, como é o caso do “Classics for All” (Estudos Clássicos para Todos/classicsforall.org.uk), entidade do Reino Unido criada com o intuito de fomentar o estudo do grego antigo e do latim em escolas inglesas do ensino médio e fundamental, e que por sua vez inspirou um projeto pioneiro no Brasil.

A instituição britânica já atingiu mais de 200 escolas naquele país. Propõe que os estudos clássicos ajudam o desenvolvimento da alfabetização em inglês, amplia a perspectiva cultural e ensina os fundamentos da filosofia e da história. Tais pressupostos permitem inclusive a melhora das oportunidades de emprego, segundo defende a instituição, pois um empregador é capaz de se impressionar com a formação em clássicas de alguém que concorre a um emprego. Como exemplo de personalidades que estudaram clássicas, a organização sem fins lucrativos cita a autora de Harry Potter, JK Rowling, e Mark Zuckerberg.

A confiança adquirida pela entidade é de tal monta que, entre os apoiadores, comparecem fundações, políticos, cidadãos comuns e até empresas como a Goldman Sachs, que participam com doações que oscilam entre mil e cem mil libras.

Em 2013, o projeto Minimus nasceu inspirado no Classics for All, sob a égide da professora associada de Língua e Literatura Grega da USP, Paula da Cunha Corrêa, e após o périplo por várias instituições. “Apresentamos a proposta de aulas eletivas para algumas escolas, mas na época não houve interesse por parte das coordenadoras. Foi a diretora da EMEF Desembargador Amorim Lima, Ana Elisa Siqueira, que não apenas se interessou pela ideia, mas resolveu transformar as eletivas propostas em aulas regulares para todos os alunos: latim para o 4º ano e grego para o 7º, na grade curricular”.

Volvidos alguns anos, a receptividade granjeou um sucesso surpreendente, e outras instituições de ensino embarcaram na ideia. “Recentemente, os Colégios Equipe e Oswald de Andrade também ofereceram aulas de grego antigo, mas como eletivas e extracurriculares ministradas por pós-graduandos em Letras Clássicas da USP. Em 2018, o Projeto Minimus de Ensino de Grego e Latim na EMEF Amorim Lima tornou-se um Programa Interdisciplinar (do Programa Aprender na Comunidade da Pró-Reitoria de Graduação da USP), com o acréscimo de aulas de Filosofia e Arqueologia Clássica na grade curricular do 8º ano”, resume a criadora do projeto.

Os resultados positivos tiveram a garantia do trabalho voluntário de docentes e alunos de Letras Clássicas da Universidade de São Paulo, que perseveraram na empreitada. Pouco depois, o Minimus foi contemplado com 6 bolsas de 12 meses, patrocinadas pela Fundação Onassis. Em seguida, conseguiu outras da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão,  da Pró-Reitoria de Graduação e da própria Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Ao contrário do que se imagina, a participação dos jovens é quase imediata, o óbice parte do outro lado, segundo explica Paula Corrêa. “Por incrível que pareça, a adesão dos alunos é sempre a parte mais fácil. Mais difícil é persuadir diretores, pais e professores. O nosso trabalho é mostrar-lhes como, além de divertido, aprender grego e latim pode ajudar no aperfeiçoamento da proficiência dos alunos na língua vernácula, desenvolver o raciocínio lógico e o pensamento crítico, ao mesmo tempo que amplia os horizontes e os introduz a conceitos e formas que fundaram a nossa civilização e que ainda se manifestam no nosso dia a dia”.

Experiências como essas demonstram que o papel da universidade como personagem formador e incentivador garante conquistas em todos os níveis, ajudam a enfrentar os perigos, atravessando em segurança, entre Cila e Caríbdis, períodos críticos.

Para os britânicos, os estudos clássicos fazem parte da sua cultura, já que figuras como Chaucer, Milton e Shakespeare se nutriram até à exaustão com a seiva greco-latina que irriga a trama de suas obras. Tal como Pitágoras, Euclides, Ptolomeu e Vitrúvio inspiram engenheiros, arquitetos, matemáticos e astrônomos em todo o mundo.

Ou seja, em tempos de barbárie, estudar grego antigo ou latim não é nada extravagante, nem perda de tempo. Tudo isso forjou – continua a forjar – a alma da civilização ocidental.

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