A valorização da música e a desvalorização do músico

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Por Renato Gonçalves, compartilhado da Revista Médium – 

A pandemia do Covid-19 expõe a vulnerabilidade do trabalho musical pós-digital

Kiko Dinucci, que transmitiu pela internet seu show Rastilho, sem público, da Casa de Francisca na última quinta

Nas respostas à crise do coronavírus, a música tem sido uma das principais protagonistas. Nas varandas, nas lives no Instagram e no Facebook, nas manifestações encabeçadas por celebridades a favor do isolamento social, nos festivais virtuais independentes ou patrocinados, só dá ela. A música até nos pareceu uma resposta natural ao momento necessário de coletividade, união e conscientização, afinal “music makes the people come together“, já cantava a bola a hitmaker Madonna na virada do milênio (em “Music”, 2000).




Públicos, cativos ou não, encontraram na música uma distração para a árdua tarefa de ficar em casa, fazer parte da construção de barreiras para frear a transmissão do vírus e aplacar a angústia que traz a falta de respostas governamentais efetivas para evitar o colapso econômico que se anuncia. Sem dúvidas, como muitos colegas críticos de música têm celebrado, são lindas e louváveis as iniciativas de músicos e produtores que vêm disponibilizando seu tempo e seu trabalho (frise-se!) para shows virtuais cem porcento na faixa. Porém, é nesse trabalho, que agora se espera gratuito, que residem questões profundas e complexas que devem ser postas.

Fazer música, nesta crise humanitária, converteu-se em um sinal de altruísmo, de doação. O artista que não quiser/puder entrar nessa onda de shows gratuitos pode até mesmo ser considerado pouco empático à situação — leitura, inclusive, que já podemos observar em comentários direcionados a determinados artistas nas redes sociais. Essa cobrança e até mesmo queixa que têm assolado alguns artistas mostra que o público, muitas vezes, está alheio a tudo o que pode envolver o fazer música ao vivo e online, como direitos autorais, cinegrafistas, editores, qualidade de equipamentos de imagem e som etc. A falta de empatia, para usar o termo do momento, talvez resida em querer de graça a única coisa que tais artistas têm a nos oferecer: seus shows, suas vozes e suas canções.

Quem paga a conta dos músicos? Aplausos, visualizações e curtidas virtuais, via de regra, não enchem os bolsos do artista nem de toda a cadeia produtiva que está por trás de uma canção gravada, composta ou apresentada (destaquemos aqui a extensa rede de produtores, instrumentistas, compositores, técnicos de som etc.). Embora, em editais e em negociações com casas de espetáculos, o alcance virtual de determinado artista tem contado como um importante argumento para sua contratação, na nova configuração da produção musical independente, é nos shows que a grande maioria dos artistas ganha o seu pão, como o sociólogo Thiago Galletta já apontou em “Cena Musical Paulistana dos Anos 2000: a Música ‘Brasileira’ Pós-Internet'” (2015).

Uma vez que todos os shows, com toda a razão, foram suspensos para auxiliar no controle da pandemia do Covid-19, de onde virá o sustento desses músicos que estão por aí sendo intimados a disponibilizarem seu trabalho como se fossem voluntários em uma espécie de Músicos Sem Fronteiras? O atual desamparo ao qual a classe artística musical está submetida só expõe a fragilidade, a precariedade e a vulnerabilidade do trabalho musical no Brasil nos últimos anos.

Foram-se os tempos em que os músicos da grande indústria podiam ter contratos milionários com gravadoras e em que a venda dos produtos disco e LP poderiam render algum trocado aos músicos independentes. Hoje o músico está por conta própria, ainda mais os que já nasceram de forma independente. A realidade da produção independente, muitas vezes romantizada com o verniz de “autonomia artística” (que, claro, vem à reboque dessa condição), é, em parte, filha da necessidade. O músico que hoje gere sua própria carreira, seus contratos e, em muitos casos, a sua própria assessoria de imprensa e suas redes sociais, não necessariamente realiza tais funções por vocação, mas, sim, por sobrevivência.

Em um momento em que estamos discutindo, nas práticas, os benefícios das ferramentas digitais, que vêm sendo usadas de forma magistral para criar redes de solidariedade, cooperação e conscientização, é salutar também pensar nos impactos que elas tiveram na música desde os downloads e o compartilhamento gratuito de MP3. Alguns foram positivos: como a ampliação e a diversidade de propostas, a possibilidade de difusão de artistas fora do circuito comercial e a aproximação entre público e artista. Porém, outros, mais estruturais, foram devastadores. A música, na era do streaming, não é mais um produto (como outrora chegou a ser por meio das mídias físicas): hoje a música tornou-se um serviço, como já vem apontando a pesquisadora Gisela Castro desde a época do surgimento do Napster, uma das primeiras redes de compartilhamento de música.

A mudança de “produto” à “serviço” poderia não significar nada além de uma alteração conceitual, não fosse a falsa ideia de que a internet seria um lugar de relações não-mediadas pelo dinheiro ou que nela, quando está envolvido qualquer tipo de movimentação financeira, paga-se muito pouco. Na lógica do ouvinte, basta dar um play no YouTube e consumir, sem que haja qualquer ônus, ou mensalmente pagar uma irrisória taxa para o Spotify para se ter acesso ilimitado a todos os discos do mundo. A alienação do consumo e da produção musical se dá tanto na ideia de que o streaming no YouTube é gratuito, sem ter em vista que, no fundo, espectadores também trabalham para a ferramenta quando visualizam o conteúdo e ao fornecerem seus dados para a comercialização de anúncios publicitários, quanto na percepção de que se está remunerando de forma justa os músicos e artistas ao se pagar o ínfimo a uma plataforma que, na prática, repassa muito pouco aos seus artistas por cada play. O músico, se for depender da faixa que grava ou da composição que elabora, não sobrevive financeiramente.

A atual (e recorrente) desvalorização do músico, certamente, encontra paralelos com outras artes, cada qual com suas questões próprias. Nesse sentido, governos que encaram a cultura como uma pauta séria e fundamental para a consolidação de uma sociedade, como o da Alemanha e o da cidade Nova York, anunciaram um pacote de assistência financeira a artistas e espaços culturais durante a pandemia do Covid-19. Enquanto o inapto governo brasileiro, que encara como inimigos a cultura e os produtores de cultura, não se mexe (o que dificilmente fará), o que nós, enquanto público, podemos fazer para remunerar aqueles que nos embalam em tempos bons e ruins?

Todos querem consumir música, mas nem todos querem remunerar os músicos. E isso não é de hoje: vem desde o consumo musical fácil, rápido e gratuito através das plataformas digitais. O que vemos agora, em um momento de fragilidade financeira de músicos, que dependem de seus shows presenciais para tirar seu sustento, é só a gota d’água de um processo que vem se acumulando há anos. Já passou da hora de encararmos o trabalho do músico para além de altruísmo e, neste momento de crise em que valorizamos a música, repararmos (nos muitos sentidos que o termo traz) a sistêmica desvalorização dos músicos.

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