Por Carlos Fernando Galvão, compartilhado de Le Mond Diplomatic –
Uma verdade parcial é um dito complicado, porque temos que admitir a parte verdadeira da afirmativa e desmistificar a parte mentirosa ou, nos casos aqui citados, lembrar ou descobrir as partes da história que foram omitidas, por desinformação ou interesse premeditado
Alguns afirmam que verdade é o que é real ou o que é possível dentro de um conjunto de valores, o que aponta para uma questão ideológica; para Nietzsche, a verdade é um ponto de vista e, portanto, impossível de ser definida de modo absoluto. Onde buscar a verdade? Na coisa ou no sujeito que apreende a coisa? Nas informações, por si mesmas, ou no significado que lhe atribuímos?
Este ano é eleitoral, ocasião em que a verdade, muitas vezes, é deturpada até o ponto no qual não sabemos mais o que é verdadeiro e o que é falso. Há pontos de vista para todos os lados, gostos e ideologias. E o curioso dessa história é que qualquer um pode mentir, falando a verdade; ou, para sermos mais condescendentes, qualquer um pode falar parcialmente a verdade, falando apenas a parte que interessa, que pode ser a parte mentirosa ou não. Sem mentir, podemos mostrar o que desejamos e esconder o que nos incomoda ou, no caso de optarmos pela parte mentirosa, pela parte com a qual manipularemos a verdade.
Números, por exemplo, podem mostrar qualquer coisa, a depender a forma como os interpretamos. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse, certa vez, que a pobreza com o Real caiu de 35% para 28%, só esqueceu de dizer que a queda foi no primeiro ano de seu governo, em 1995, e que após longa estagnação, só voltou a crescer de modo significado no governo Lula, notadamente em seu primeiro mandato. Cardoso disse, também, que o rendimento médio dos trabalhadores em seu governo foi, no pico, de R$1.074,00 e que esse valor é superior aos R$1.041,00 da média atingida nos governos Lula. Contudo, por certo lapso de registro, não pode (ou não quis) mostrar que a média, ao final de seu governo, foi de R$959,00 e que, desde a posse de Lula, a média só fez aumentar.
Já partidários dos governos Lula já disseram, por exemplo, que a verba para a Educação subiu para mais de R$50 bilhões; verdade, mas em termos da proporção do gasto total do orçamento da União (apenas autorizativo e deveria ser determinativo, uma vez aprovado), subiu de 7.3% para 8%. Cresceu, mas nem tanto quanto alardeado.
O parágrafo anterior é apenas um exemplo de como podemos falar a verdade… não dizendo a verdade, ao menos dizendo a verdade incompleta. Uma verdade parcial é um dito complicado, porque temos que admitir a parte verdadeira da afirmativa e desmistificar a parte mentirosa ou, nos casos aqui citados, lembrar ou descobrir as partes da história que foram omitidas, por desinformação ou interesse premeditado. Alguns dos chamados “analistas” dos mercados, vez ou outra teorizam sobre a possibilidade de novas crises na Europa, mais especificamente, em países como Grécia, Portugal e Espanha; dizem que os Estados gastaram demais e que a conta chegou cedo demais; uma conta que o povo, cujas migalhas são, invariavelmente, a prova cabal da indecente concentração de renda e poder de quem gasta para que nós paguemos seu cartão de crédito ou sua hipoteca, paga desde sempre.
A solução, para esses especialistas é, invariavelmente, o corte de gastos públicos, nas áreas sociais (mantendo os gastos financeiros com os juros que, no final das contas, é para seu próprio benefício) para aumentar o equilíbrio fiscal e manter a farra dos endinheirados.
O que não se diz é que o desequilíbrio, não raro, não ocorreu porque houve mais gastos com, por exemplo, Previdência ou Educação, mas porque os Executivos mundiais, sempre dóceis com o grande capital, canalizaram bilhões, trilhões de dólares, euros, reais e outras moedas, para ajudar a banca a não falir. Aí, o que acontece? Como o dinheiro público é alocado para o sistema financeiro, e dinheiro não cresce em árvores, evidentemente começa a faltar para a Previdência, para a Educação… Isto posto, a solução, para que todo esse montante gigantesco possa estar sempre à disposição do capital é, como dito acima, o corte nas áreas sociais aqui mencionadas e em outras. Eis a grande disputa do mundo, desde muito especialmente o pós II Guerra, com a retomada de ideias liberais na economia, só que de modo muito mais concentrador de renda e de poder, conhecida pelo nome de neoliberalismo: a luta pelos fundos públicos, sempre hegemonizados pelos que detém o poder social.
Costuma-se dizer que o importante não é que o governo gaste mais ou menos, mas que mantenha suas finanças equilibradas (para quem e para quê?). Certo. Entretanto, por que o equilíbrio deve ser feito, sempre, segundo as propostas do capital ou de seus porta-vozes (os quais têm o direito de sê-lo, diga-se de passagem – só que podiam assumir essa condição, ao invés de negá-la, sob um discurso “técnico”), em áreas sociais? Por que não se corta, por exemplo, no Brasil, do pagamento de algo como R$200 bilhões anuais de juros? Nossa dívida mobiliária fechará este ano em aproximadamente R$5 trilhões! Isso, pelo visto, não desequilibra as políticas fiscal e tributária, não desestabiliza os investimentos! O que provoca isso, dizem os tais especialistas, é o aumento do salário do funcionalismo, como os médicos e professores das redes públicas, esses marajás cujos exorbitantes salários tanto mal fazem à nação.
A análise dos discursos sociais não pode prescindir da interpretação de certa estética, ética e economia do discurso oculto, por ingenuidade informativa, por falha formativa, por incompetência profissional ou por cretinice de caráter. Sem que tenhamos condições de decodificar o que é dito ou escrito, mas especialmente, do que não é dito ou escrito, simplesmente não avançamos, individual e socialmente e apenas pessoas saudáveis, bem educadas e com uma estrutura de vida digna (cultura, lazer, emprego, habitação, emergia, segurança, alimentar e vital, transporte e compreendendo que o Meio Ambiente deve ser preservado) podem conseguir isso.
Como dizia Darcy Ribeiro, a educação pública ruim não é um acidente, mas um projeto de nação dos que lucram com isso. Subdesenvolvimento político e econômico, ainda mais, de valores humanos, não se improvisa, constrói-se por anos, décadas. Não será fazendo equilíbrio fiscal nas áreas sociais, para pagar juros exorbitantes para banqueiros, grandes empresários e rentistas, que conseguiremos construir um país digno para todos!
Carlos Fernando Galvão é geógrafo, doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana, cfgalvao@terra.com.br