Por José Maschio, jornalista, Facebook
Chegou ao calçadão e procurou saber a hora. O relojão do Edifício do Café apontava 11 horas. Ele sentou em um banco. Suava. Transpirava suor e raiva. Maquinalmente procurou o cigarro no bolso da camisa. Estava sem. A vontade de fumar só não era maior que a raiva, a frustração. Negritin se desesperava.
Tinha acordado cedo. A mãe o acordara as cinco da matina. Tomou apenas um café preto. A mãe perguntara se queria comer. Ele mentiu. Falou que não tinha fome. Negritin tinha vergonha. Vergonha de contar à mãe que não comia há dois dias.
O sol de outubro enchia o dia. Pleno em plena manhã. Negritin suava. De calor, de fome e desespero. E inventariava suas desgraças. Tinha sido despejado do quarto, de pensão, há três dias. O jeito foi ir para a casa da mãe. No Santo Amaro. Lá tinha que enfrentar o olhar inquisidor do pai.
Os últimos meses tinham sido difíceis. Primeiro a separação. Fátima o trocara pelo pastor da Igreja. Antes o acusou de ser frouxo. Desistir sempre. Não persistir. Por isso o desemprego. Não adiantava falar que não arranjava nada.
Vivia, meses a fio, de bicos esporádicos. Fazia de tudo. Que vergonha de trabalhar não tinha.
Fátima parecia a sua mãe. A cobrar persistência. Persistência não, que a mãe não usava a palavra. A cobrar vontade e firmeza. Negritin, no banco do calçadão, coçou a carapinha.
Seria mesmo um frouxo? E fora a insistência da mãe que o fizera madrugar. Sem dinheiro para o ônibus. Tinha vergonha de pedir dinheiro para a mãe. Caminhou do Santo Amaro até o ponto de chapa em frente ao parque de Exposições. Ficou lá até um pouco mais das 10 horas. Passou um vizinho da mãe, de moto. Pegou carona até o centro. Desistiu de esperar por um trampo de chapa.
Decidiu tentar alguma coisa no centro. E estava lá, no calçadão sem tino nem destino. E pensava nos bons tempos. Apareceu um morador de rua, noiado, a pedir dinheiro para um corotinho. Arrumou desculpa. Nem para o cigarro tenho Mano. O morador de rua ofereceu um paraguaio a ele. Envergonhado, aceitou.
Fumava e pensava. Até noiado está melhor que eu. Que merda! Lembranças dos velhos tempos voltaram. Motorista de carro do Jornal. Carteira assinada e tudo. Vivia como um lorde. E sorriu riso triste. Tempos que não voltariam. Nem Fátima voltaria. E agora aquilo de pensão alimentícia para o filho. Fátima não voltaria. Mas ameaçava com prisão.
Fumou o paraguaio até o filtro. A pensar solução. Solução não aparecia. Aí, pensou no Cara. O Cara tinha falado. Alertado. Foi quando começaram as requisições para táxi no jornal. Ou vocês se organizam, ou não vai sobrar motorista. Ele e os outros riram do Cara.
O Cara tinha manias sindicais. Sempre a brigar com a direção do jornal.Pensou. Hoje nem mais táxis usam. É tudo uberizado. O Cara tinha razão. Ao pensar no Cara, pensou alternativa. Há um mês o Cara tinha arrumado um trampo para ele. Bico macio, pintar o apartamento de uma dona no centro. Tinha sido o último dinheirinho honesto e tranquilo. Depois só biscates chulos.
As pessoas passavam apressadas. Voltou a consultar o relojão. Fazia meia hora que estava lá sentado. Sem nexo. Pensou no celular, que tinha repassado para o dono do boteco. Não tinha conseguido pagar a conta. E com o celular, foram embora esperanças de chamadas para um bico ou outro. As pessoas passavam apressadas. Ele disfarçava a pressa, pressa de um trampo.
Mas antes pensava comida. A fome é uma coisa danada. Dolorida. O diabo é que não via alternativa. Dispensava soluções. A fome não ajuda a pensar. Um dorzinha no estômago. Era a fome a cobrar comida. Negritin transpirava. Negritin sentiu vertigem. Só faltava essa. Desmaiar ali no calçadão. As pessoas, apressadas, iriam parar e ver a cena?
E sentia vergonha e medo.
Caminhou até outro banco, agora na Praça da Catedral. Uma mulher veio oferecer sexo. Negritin lamentou. Tenho dinheiro não, moça. Tá foda. A mulher riu. Riso escancarado nos dentes falhados. Foda é coisa boa, moço. Tá é uma merda. Teceu teia de lamentações. Não está fácil para ninguém. Negritin sentiu ainda mais vergonha. Uma vergonha solidária com a pobre prostituta do centrão.
Atinou que a dorzinha no estômago estava a crescer. Virar dor forte. Se ao menos um cigarro. Aliviava a dor e a sensação de que ia desmaiar. O Cara era a alternativa. Sabia onde achar o Cara. Devia estar lá no bar do Jaime. Era costume do Cara. Um bisteca e cerveja no bar do Jaime. O diabo é que o Cara era metódico.
Só chegava ao bar do Jaime depois da uma da tarde. Quando o alvoroço do almoço acabava. Pensou no prato feito do bar do Jaime e salivou vontades. Um sortido ia bem. Mas cadê grana para isso? O jeito era esperar. E arriscar. E teve medo. Já pensou se o Cara está a viajar? O Cara viajava sempre. Irritou-se.
A irritação passou a desespero. O Cara era sua esperança. E se não aparecesse? Podia pedir um fiado ao Jaime. O português sabia ele ser gente boa. Mas não suportaria a vergonha. A mãe e Fátima tinham razão. Era mesmo um frouxo. Desistia sempre. Na primeira dificuldade. Um frouxo.
Resolveu ir até lá, comprovar. Mas a coragem era pouca. E ficou, na Concha Acústica a espionar o bar do Jaime, logo ali, no centro comercial. Nada do Cara. E o pior é que ali era conhecido. Teve vergonha de alguém passar e ver ele ali, junto aos noiados que dormiam na Concha.
Fosse de noite, tudo bem. Até aparecia o pessoal do sopão. Aproveitava. Mas de dia, menos da uma da tarde. A dor da fome ficou maior que a vergonha. Resolveu ir checar. Chegou ao balcão do bar e procurou pelo Cara. Sapuva, o atendente, disse que não tinha chegado ainda. Mas virá? Angustiou-se. Sapuva tranquilizou. Ele passou aqui ontem, virá daqui a pouco.
Vai comer Fumaça? Era o português. Inventou desculpas. Já almocei portuga. E saiu rápido. Voltou à Concha Acústica. E ficou lá, a ruminar a dor da fome. Podia ter pedido um sortido para o português. Ele o chamava de Fumaça. Sinal de intimidades dos bons tempos.
Tempos de motorista do Jornal. Com carteira assinada e tudo. Mas Negritin tinha vergonha. Fátima e a mãe tinham mesmo razão. Era um frouxo.
Frouxo ou não a dor é igual. E a dor da vergonha disputava com a dor da fome. Qual era maior? Negritin estava quase em estado de torpor. Uma sonolência o fazia piscar os olhos. Sentiu, novamente, que podia desmaiar. Suava frio. Tentou se levantar e sentiu que cambaleava. Voltou a sentar. Respirou fundo. Um frouxo. Era isso que era.
Suava frio e sentiu um frio. O frio da fome. Em pleno sol de outubro. Um sol que enchia tudo e todos. Tinha perdido a noção de tempo. Cochilou sentado no banco da Concha Acústica. Foi acordado pelo arrulhar dos pombos. Esses comiam. Vida boa esses pombos. Não precisavam eles, os pombos, disso de se afirmar forte ou frouxo. Só pombeavam. Indiferentes.
Juntou coragem e levantou-se. Aprumou-se. Olhou em volta. Ninguém o reparava. Respirou fundo e voltou a bar. Estava decidido. Caso o Cara não estivesse lá, ia pedir fiado ao português. Ia comer. Afinal, até os pombos comem. Ele era gente. Merecia mais que os pombos. E até merecia um pombo a passarinho. Que a fome não tinha preconceito.
Ao entrar no bar, Sapuva reportou. Tá lá no corredor, com umas estudantes. Logo essa. Esperava o Cara só. Como teria coragem de pedir ajuda com gente na roda? Respirou fundo a dor no estômago. Estava indeciso. Um frouxo era o que era. Não precisou ir.
Lá do fundo o Cara o viu. Ei canalha, junte-se aos bons para corrompê-los. Era mania do Cara. Ele foi. Juntou-se. Cumprimentou as estudantes. Puxou uma cadeira. O Cara pediu. Sapuva, mais um copo. Na mesa um porção de linguiça sorria para ele. Ficou com vergonha de atacar. Suava. Suava frio e tremia.
As estudantes não repararam. O Cara sim.