A vida num dia de lantejoulas

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, foi sambar na avenida da poesia em prosa. No carnaval que passou, César vestiu esta crônica com uma bela fantasia feita de lirismo e lantejoulas.

“Uma historinha de Carnaval. Para variar, Bucco vivia em busca de bicos. Naquela quinta-feira, antes de se juntar aos seus e aguardar uma oportunidade, qualquer uma que pintasse, Bucco pegou a bicicleta para levar a filha à escola. Era a sua segunda ou terceira missão do dia, se forem contabilizadas a ida à padaria e o café forte que fez para toda a família – pois pode faltar muita coisa na mesa de um dos nossos, mas café, não.





A menina tinha acordado toda energia. Afinal, era dia de baile de carnaval na escola. Tão eufórica ela estava que por ela teria dormido fantasiada. Foi difícil convencê-la de que de ela não poderia dormir vestida de fada do dente, as lantejoulas não agüentariam tamanho vira e desvira, tanto mexe pra lá e pra cá típicos de quem quer que chegue logo o dia seguinte. E ainda por cima, a roupa pinicava.


Roupa, não. Fantasia. Era brilhante e simples, com um par de asas de fada verdes comprado em armarinho. Já o chapeuzinho em forma de cone era exclusivo, feito à mão. A menina iria assim personalizada, graças à mulher de Bucco, que não perdera de todo as habilidades de costura, o ziguezague ainda dava pro gasto, embora ela não vivesse mais de Singer, já não enxergasse bem.


Algumas coisas demoram a sair da alma da gente, parecem que foram postas ali para durar, em perfeita combinação entre o talento e a necessidade.


Tendo chegado a hora, montaram os dois na bicicleta cinza. Durante o trajeto, foram surgindo outras crianças acompanhadas dos pais ou dos responsáveis. Alguns de bicicleta; outros a pé. Algumas outras saiam da condução. A maioria, fantasiada; mas ninguém absolutamente ninguém era capaz de superar em beleza e graça a filha, assim ele considerava no íntimo de seus pensamentos.


Quando soou o sinal, a menina partiu aos saltinhos pra dentro da escola, deu a mão à professora, que a colocou em seu lugar na fila. Bucco ficou paralisado com as mãos entres as grades do portão (infelizmente, havia muitas grades na escola, grandes grades que não combinam muito bem com o espírito libertário que uma escola é capaz de evocar).

Houve um momento, mais ou menos como um microssegundo ou menos, em que tudo pareceu ter se congelado. Poderia se ouvir o som de uma pena a pousar no solo. Foi quando a menina se virou em direção ao pai e fez um gesto assim com a varinha de condão, livrando Bucco de toda e qualquer infelicidade humana, pelo menos enquanto aquilo lhe durasse na memória.

Era bom ter boa memória, pensou Bucco. Para as demais coisas, ele que lutasse. O difícil era saber se ainda haveria alguém disposto a receber as lições que ele seria capaz de transmitir quando chegasse o momento oportuno.
Não se sabe quanto tempo Bucco ficou ali congelado com as mãos nas grades do portão de entrada da escola. O microssegundo talvez tivesse se espichado. Entretanto, foi tempo suficiente talvez para fazer jus ao apelido de “Balão”, isto é, de alguém que vive no mundo da lua ou pelo menos perto dele.

Era cedo, era manhã, quem sabe ele não conseguia alguma coisa para fazer para ter tempo de aproveitar a promoção de cerveja no supermercado? Assim a geladeira não ficaria tão vazia. Já que o trabalho não vem até você, você precisa ir ao encontro de algum trabalho. Trabalho, não. Ocupação, de alguma ocupação, portanto. Deus ajuda quem anda cedo de bicicleta. Vai, Batoré, busca alguma coisa pra fazer, era o que ele dizia a si mesmo, porque ele sabia mais que ninguém que ele, Bucco, vivia em busca de bicos.


Ele tinha cerca de cinco horas para acertar alguma coisa pro dia. Antes que chovesse, uma vez que a previsão de chuva era infalível. Quem sabe não haveria a oportunidade de desentupir uma calha, de refazer um telhado? Quem era leve, esguio o suficiente para subir em telhados em meio a tempestades de verão?


Tudo estava em aberto, exceto o seguinte: às doze horas impreterivelmente, ele viria buscar a filha, que iria lhe tagarelar em detalhes as mais inacreditáveis histórias tão logo saísse da escola. Assim foi feito. E as lantejoulas custaram mas finalmente caíram sobre o cinza da bicicleta. Tupinicavam.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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