A vida precificada – e descartada

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Por Adilson Paes de Souza, compartilhado de Projeto Colabora – 

Exército da segurança privada – de soldados como os assassinos de João Alberto Silveira Freitas, no Carrefour de Porto Alegre – é maior do que o efetivo das polícias militares no Brasil. E não há controle sobre ele

O brutal assassinato de João Alberto Silveira Freitas, o Beto, no supermercado Carrefour em Porto Alegre, chacoalha a todos nós que damos importância à existência humana. Imediatamente pensei no quanto nossa vida é vilipendiada a cada instante e de várias maneiras. Para os executores de tal bárbaro crime, Beto não era uma pessoa, mas algo sem valor, ou pior, com valor negativo. O martírio nos revela, mais uma vez e de forma contundente, que todos somos mercadorias disponíveis no mercado da violência e da morte, temos utilidade quando da definição do preço a ser pago por determinado serviço de segurança privada – e nada mais. Uma vez definido o preço, estabelece-se um domínio sobre determinado território e o cenário de guerra se estabelece. João era o inimigo! Apresento um decálogo a partir desse assassinato.




  1. A naturalidade da ação. Os seguranças que mataram João Alberto agiram com naturalidade assustadora, estavam confortáveis e desenvoltos, a ação demonstrou que eles pareciam se sentir amparados para tal prática. Precisa ser explicado por que havia neles a certeza de impunidade.
  2. A segurança informal. Um dos seguranças era policial militar e não pertencia aos quadros de funcionários da empresa contratada pelo Carrefour; contudo, ambos trabalhavam juntos. A contratação de seguranças informais pode ser mais vantajosa para a empresa contratante, pois geralmente não há o devido recolhimento dos encargos sociais previstos na legislação. Em suma, sai mais barato. Há vários questionamentos: Essa era uma prática comum do supermercado? Isso não é irregular? Há mais seguranças em idêntica situação? Com a palavra quem era responsável pela fiscalização e se omitiu. (Na semana passada, o Carrefour anunciou que acabará com a terceirização no setor de segurança e começará a mudança justamente pela unidade onde ocorreu o crime.)
  3. Policiais militares proprietários de empresas de segurança. Além de expressa vedação legal, há dispositivos que proíbem tal conduta no regulamento disciplinar das Polícias Militares. Embora o PM não possa ser dona de empresa de segurança, essa é uma prática constante e tolerada na instituição. Permite-se assim que o profissional de segurança pública atue com desenvoltura no ramo da segurança privada. Não há um evidente conflito de interesses? Como alguém que é empresário e busca auferir lucros com sua atividade, pode ser responsável em oferecer, com a sua atuação em determinada área, segurança pública para a sociedade, na maneira que ela almeja? O conflito de interesses é evidente: melhor segurança pública, menor possibilidade de lucro com a sua atividade empresarial de segurança privada. Talvez isso auxilie na explicação da segurança pública deficiente em nossa realidade social. Tudo isso é ignorado pelas autoridades.
  4. O incrível efetivo de vigilantes particulares no Brasil. Dados do Anuário Estatístico do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2017 revelam situação alarmante: há 519.014 vigilantes e 4.382 empresas de segurança, para 436.303 policiais militares no Brasil. Os seguranças privados constituem o maior contingente de agentes no país (82.771 pessoas a mais que nas polícias). Quem controla esse exército? Como ele é formado e treinado para atuar? A Polícia Federal possui estrutura para exercer a fiscalização e o controle adequados? Esse cenário não tem recebido a devida atenção do poder público. A isso soma-se o contingente de policiais que exercem a atividade de segurança particular no horário de folga, os chamados “bicos”. Atividades ilegais toleradas e estimuladas pela instituição, por serem maneiras de aumentar o rendimento financeiro do policial, aliviando a tensão por aumento de salários.
  5. Estética e atuação militar dos vigilantes. Desde o uniforme, passando pela postura e pela maneira como olham e interagem, os seguranças se parecem mais com militares atuando em território inimigo e prontos para o combate. O jeito como se posicionam, como nos olham, com ar de superioridade, as respostas curtas e secas, a postura arrogante. Buscam impor o medo e não angariar respeito, num evidente traço de autoritarismo civil. Medo não rima com segurança.
  6. Um universo escondido. Quem controla a formação desses vigilantes? Qual é o currículo das escolas de formação? Qual a qualificação dos instrutores? Tal qual ocorre na formação dos policiais, há sigilo e a sociedade não pode saber muito menos participar destas atividades. O Ministério da Justiça deveria se preocupar com isso e não com a realização de dossiês, elaborados por arapongas, contra pessoas que contestam o governo.
  7. A ausência de equipamentos menos letais. Há uma gama de equipamentos que poderiam fazer parte do uniforme dos seguranças para uso em situações que exigissem a intervenção física. Por que não usar o spray de pimenta, por exemplo, para conter uma pessoa agitada, com menor possibilidade de dano? Novamente, o poder público se omitiu. Posso afirmar que o uso adequado do spray de pimenta, no caso do Carrefour de Porto Alegre, poderia ter levado a um desfecho diferente.
  8. A conivência dos funcionários com os agressores. Há mais responsáveis diretos pela morte de João Alberto. Falo da funcionária que tentou impedir uma pessoa de filmar as práticas delitivas e dos dois seguranças de camisa branca que se somaram ao grupo, um deles para também agredir fisicamente a vítima. Há um espírito de corpo nefasto que busca dar a suporte às práticas abusivas. A violência perpetrada contra terceiros foi um dos fios condutores dessa união. Fenômeno idêntico atua com força nas hostes policiais, o que denominamos de subcultura policial.
  9. O aval da empresa a tais absurdos. É comum, quando da ocorrência de fatos absurdos como esse assassinato, que a empresa envolvida manifeste publicamente apoio à família da vítima, além de constrangimento e reprovação pelo ocorrido. Faz isso por meio de declarações públicas e ações publicitárias veiculadas nos horários nobres dos meios de comunicação. Mas, para por aí. Decorridos algum tempo e longe dos holofotes, contrata advogados e o processo judicial se arrasta por longo tempo. Se a empresa, no caso o Carrefour, quer proporcionar todo o apoio necessário à família da vítima, se realmente é contra o racismo, precisa apresentar sinais inequívocos. Menciono um: reconhecer a própria responsabilidade jurídica pelo ocorrido, sem contestações ou apresentação de qualquer tipo de recurso. Só assim demostrará, de maneira clara e efetiva, que não concorda com o que ocorreu. Fica o desafio.
  10. A segunda morte da vítima. Tão logo o triste fato veio a público, começaram a ser veiculadas na imprensa notícias de que João Alberto possuía antecedentes criminais, com histórico de agressão. Os fatos foram reproduzidos com destaque, seguidos pela afirmação de que nada justificava o ocorrido. Mas a mídia já havia caído na armadilha: desacreditar a vítima e responsabilizá-la pela própria morte. É prática corrente quando alguém é morto pela polícia. A pessoa assassinada é morta pela segunda vez, na sua imagem e na sua reputação. Essa é uma prática recorrente, infelizmente. Posso garantir que idêntico expediente será empregado por ocasião do julgamento no Tribunal do Júri, visando a sensibilizar os jurados para a absolvição dos réus.

Há muita gente ganhando dinheiro (e muito!) com essa realidade.

Não à barbárie! Não ao extermínio! Todos devemos ser intolerantes com a intolerância!

Na foto: Protesto contra o assassinato de João Alberto por vigilantes do Carrefour: exército da segurança privada tem efetivo maior do que os das polícias (Foto: Fabio Teixeira/Agência Andalou/AFP)

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