Mais uma edição da coluna “A César o que é de Cícero” do mestre em Literatura Cícero César Sotero Batista.
Vila Isabel
Dai a César o que é de Cícero? Tá bom. Então me deem um pouco da infância em Vila Isabel, amizade, que me dou por satisfeito.
Segundo a cartografia da cidade do Rio de Janeiro, o bairro de Vila Isabel fica na Zona Norte e faz fronteira com os bairros do Maracanã, da Tijuca, do Andaraí, do Grajaú e do Engenho Novo.
Tudo bem, tudo certo, mas a cartografia da cidade não conhece a cartografia dos afetos. Sabe o que é pisar nas calçadas onde estão escritas à pedra portuguesa algumas letras de Noel Rosa? Tudo bem que às vezes um Si-Bemol é uma caca de cachorro, mas a gente releva.
É difícil se esquecer de um lugar onde se jogava bola na rua. Quando vinha um carro, os jogadores ficavam parados feito centroavante em fim de carreira. Depois o jogo, a jogada se iniciava. Ou se jogava futebol na calçada mesmo. Os gols eram de Havaianas nos dois casos. Era o olho que dizia se foi gol ou se foi trave. Ou alguém de fora fazia às vezes de VAR.
E a bola era a tal de Dente de Leite. Procura no Google, se quiseres ter uma ideia. Eu preferia a que já estivesse bem cacarecada, era mais fácil de controlar.
De vez em quando a porrada estancava entre os jogadores, mas futebol é assim mesmo. E quando algum jogador perdia a cabeça, geralmente a do dedão, devido a uma topada, doía um pouco na gente.
Jogava-se descalço mesmo, que o Kichute era pra escola.
É claro que ali na rua Barão de Cotegipe, na minha aldeia, já tinham chegado sinais da modernidade. A gente era moderno, bebia Yakult e Coca-Cola sem abandonar a Bala Boneco, já despontavam no horizonte o Pop de Michael Jackson e de Prince. Em muitíssimo breve, o bigodinho dos meninos cresceria, e o pessoal mais avançado vestiria Pier e Rainha Iate pra se sentirem os tais; isto, é claro, antes da onda colossal da Company e do All Star. Vestíamo-nos em uma mistura de surfista com alunos de High School.
É também difícil se esquecer de que bastava pegar um ônibus na Praça VII para se chegar, dando umas duas voltas ao mundo, à praia de Ipanema. Certa vez fui à praia de Ipanema, com um tempo ruim dos diabos. Caraca, isso deve ter sido no tempo em que se escrevia “Hyphanema” e os ônibus tinham fichas de plástico!
Enfim, fui à praia com um pessoal da Escola Equador – aquela de incontornável lema: “Escola Equador: Entra burro e sai doutor”. Eu cumpri à risca a profecia. Sou doutor em Letras. O que não quer dizer muita coisa, sem folclore nenhum. A vila é de viés.
Vila Isabel tem escola de samba.
Vila Isabel de Noel Rosa, de Aldir Blanc, de Martinho da Vila.
Vila Isabel do Petisco de Vila e dos botecos mais em conta.
Vila Isabel do Hospital Pedro Ernesto.
Vila Isabel do Supermercado Boulevard.
Vila Isabel do Canal da Maxwell.
Vila Isabel, Vila Isabel, Vila Isabel.
E finalizo a desglamourização do mundo com esses versinhos de pé quebrado de quem não conseguiu se desviar do paralelepípedo:
Minha vila tem palmeiras
Onde canta o Boulevard
Lá no Morro dos Macacos
Inda ouço o ratatá
Não permite Deus que eu morra
Sem que eu volte dessa trip
Pra Vila Isabel, na Barão de Cotegipe.
Fui.
Feitiço da Vila – Noel Rosa
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.