É hora de pensar políticas de reparação à categoria profissional que o bolsonarismo transformou em inimiga
Por Fernando Penna e Renata Aquino, compartilhado de Le Monde
O início do governo Lula traz esperança para categorias profissionais que foram duramente perseguidas pelo bolsonarismo: foi noticiada na última semana a criação do Observatório Nacional da Violência contra Jornalistas – uma iniciativa importante para garantir a liberdade de imprensa no país. Para retomar também o direito à educação, precisamos de um Observatório Nacional da Violência contra Professoras e Professores.
O bolsonarismo se formou a partir de teorias da conspiração e usou como estratégia de formação de grupo ataques constantes a sistemas de verificação e de construção de conhecimento entre pares; logo, jornalistas e docentes foram usados como alvos para mobilizar por meio do medo e do ódio. Teorias da conspiração foram tomando o lugar do pensamento crítico no entendimento da realidade. Onde diminuiu a legitimidade da educação sobre bases científicas confiáveis, proliferou o conspiracionismo base da visão de mundo bolsonarista.
O espantalho da “doutrinação” foi uma das teorias da conspiração de maior eficácia: ela colocou as crianças, símbolos da inocência, como atacadas justamente pelos/as profissionais com os/as quais elas passam um período fundamental da sua formação. Esse medo de “professores doutrinadores” que estariam “corrompendo” a infância foi cultivado por uma longa campanha onde, pouco a pouco, desde 2004, tudo que não fosse conveniente pôde ser considerado “doutrinação”, conforme a categoria docente perdia legitimidade no sistema educacional do país.
Esse ódio mal disfarçado sob a teoria da “doutrinação” – que vale destacar: é dirigido a uma profissão altamente feminizada – foi o que serviu como um ímã entre grupos e ideias que até certo momento eram somente próximos: vide o caso do MBL, que realizou uma marcha nacional pró-Escola sem Partido em 2017. “Denunciar caso de doutrinação” virou plataforma para ganhar atenção, engajamento e votos.
Com os eventos de 8 de janeiro fica mais explícito que palavras convertem-se em atos. Em Curitiba, um professor de história foi demitido sumariamente de uma escola particular por trabalhar com uma fonte histórica que mostrava que o lema “Deus, Pátria e Família” já havia sido usado por regimes ditatoriais em Portugal. Em Salvador, uma professora foi afastada por tentar usar com seus alunos um livro de Conceição Evaristo, autora negra fundamental no cenário literário do país. Os casos são muitos e é generalizado o cansaço por antecipação e a autocensura de metodologias e conteúdos para “evitar problemas”. Esses casos indicam um fenômeno amplo de deslegitimação da autoridade intelectual de professores/as no ensino básico. Diferentes movimentos de censura recomendam até hoje que pais processem educadores porque, independente do resultado judicial, o desgaste emocional e financeiro leva naturalmente à autocensura docente.
Quando famílias fundamentalistas, líderes religiosos e políticos de extrema direita deixam os profissionais da educação com medo de ensinar sobre a teoria da evolução, sobre desigualdades raciais ou de gênero, ou o sobre que foi a ditadura militar por receio de serem demitidos ou expostos nas redes, indo contra sua formação e seu dever profissionais, as principais vítimas são as liberdades de aprender e de ensinar. É o próprio direito à educação que está em risco, e, por consequência, nossa democracia.
Fernando Penna é diretor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Renata Aquino é bacharel e licenciada em história (UFF), mestre em Ensino de História e Historiografia pela FFP-UERJ.