Por Paula Sperb, BBC Brasil –
Júlia foi baleada no rosto; Anderson, levado pelo tráfico: as razões da violência sem precedentes em Porto Alegre
Bruna*, de 11 anos, já perdeu 20 dias de aula neste ano. “Minha filha não pode sair de casa, porque toda manhã tem um corpo na rua onde a gente mora”, justificou a mãe da estudante à direção da escola.
Júlia*, de 15 anos, morreu após levar diversos tiros no rosto de uma facção rival à do namorado. A mãe de Anderson*, 16, não sabe se ele está vivo ou morto. O garoto nunca foi achado desde que foi levado à força por traficantes.
Todos os casos ocorreram recentemente na periferia da zona norte de Porto Alegre, uma das áreas mais violentas da capital gaúcha. As identidades das vítimas foram alteradas nesta reportagem por segurança das testemunhas.
O Rio Grande do Sul enfrenta uma crise na segurança pública sem precedentes, de acordo com as estatísticas.
O número de latrocínios (roubo seguido por morte) aumentou 128%, mais que o dobro, de 39 para 89, no primeiro semestre deste ano em comparação ao primeiro semestre de 2010. Em relação aos primeiros seis meses do ano passado, esse tipo de crime aumentou 35%.
O roubo de veículos (com a presença da vítima) aumentou 98% no primeiro semestre de 2016 quando comparado ao primeiro semestre de 2010, um salto de 4.772 para 9.225 ocorrências do tipo. Quando comparado com o primeiro semestre do ano passado, os roubos de veículos subiram 16%, de 7.930 para 9.225.
Os homicídios dolosos (com intenção de matar) cresceram 45% na comparação de seis anos, de 879 para 1276. Esse tipo de crime cresceu 6% do primeiro semestre de 2015 (1203 casos) em relação ao primeiro semestre de 2016 (1276 casos). Os dados são da Secretaria de Segurança Pública do Estado.
A capital gaúcha está entre as 50 mais violentas do mundo, de acordo com a ONG mexicana Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal, figurando na 43º posição.
Segundo o ranking, a taxa de homicídios de Porto Alegre é 34,73 a cada 100 mil. O Brasil é o país com mais cidades no ranking.
Porto Alegre fica atrás de Campina Grande, na 40ª posição, com 36,04 homicídios a cada 100 mil habitantes, e na frente de Curitiba, da 44ª posição, com 34,71 homicídios a cada 100 mil habitantes.
Os especialistas consultados pela BBC Brasil apontam duas principais razões para a expansão da criminalidade: a disputa da hegemonia territorial pelo tráfico na região metropolitana e o parcelamento do salário dos policiais militares e civis.
Rivalidade entre facções
“Havia uma facção majoritária, que tinha domínio, e essa facção está sendo enfrentada por sete pequenos grupos que se uniram”, diz Marcos Rolim, professor e consultor na área de segurança pública. “Eram episódios localizados que agora se generalizaram para todo o território.”
Com inúmeros crimes que chocaram a opinião pública no último ano, o governador José Ivo Sartori (PMDB) trocou o comando da área de segurança. Cezar Schirmer (PMDB), ex-prefeito de Santa Maria, foi anunciado no início de setembro como novo secretário da pasta.
Schirmer concorda que crimes brutais estão deixando a periferia e atingindo as classes mais altas. “Quando morre alguém da periferia é uma estatística. Quando morre alguém do nosso estrato social, não é [apenas] um número”, compara Schimer.
Os crimes cometidos por integrantes de facções costumam ser marcados por brutalidade, como esquartejamento, decapitação e tiros no rosto.
Para Rodrigo Ghringhelli de Azevedo, sociólogo e professor do recém-criado curso de Segurança Pública da PUC-RS, a crueldade é um “mecanismo de controle e poder” das facções.
Rolim, que pesquisou sobre a violência extrema de criminosos gaúchos em seu doutorado, explica que os crimes bárbaros são usados como “medida” de valorização no grupo. “Quanto mais violento, mais é respeitado. Se é perigoso, merece respeito.”
Além disso, esse tipo de violência decorre de um “treinamento” dos jovens pelos traficantes mais velhos. Esse treinamento alcança até crianças de dez anos, especialmente as que estão fora da escola.
Violência na escola
A rotina de um colégio público visitado pela BBC Brasil na zona norte da Porto Alegre é marcada pela barbárie. “Tive alunos que ficaram afastados duas semanas porque seus parentes estavam envolvidos em casos de esquartejamento”, contou uma professora de 45 anos.
Como os alunos passam de manhã por locais onde os corpos são largados de madrugada, não é raro que as crianças compartilhem imagens chocantes pelo Whatsapp.
O aplicativo também é usado pelos criminosos. “Os alunos mostram pra gente os avisos de toque de recolher que os bandidos mandam”, conta outra docente, de 53 anos.
“Quem for pego depois das 20h vai ser assaltado ou morto. Vai ter tiro na rua”, dizia uma das mensagens.
Pais estão buscando as crianças na escola horas mais cedo para evitar que filhos cheguem tarde.
Salários parcelados
Além da guerra do tráfico, que se espalha por toda cidade, o parcelamento dos salários dos policiais militares e civis afeta o policiamento ostensivo e o atendimento à população. “É mais ou menos assim: o governo finge que me paga e eu finjo que trabalho”, analisa Rolim.
Neste mês, os parcelamentos impostos pela gestão Sartori chegam ao nono mês consecutivo. Funcionários do Legislativo e do Judiciário recebem normalmente.
Sobre o parcelamento, a Secretaria da Fazenda afirma que o Estado enfrenta uma crise financeira e tem tomado medidas para evitar um rombo maior nas contas públicas, como aumento de impostos e combate à sonegação. O rombo na Previdência deve ser de R$ 9 bilhões neste ano e o déficit para fechar as contas do governo deve ser de R$ 2 bilhões.
“Mesmo com a crise, estamos honrando os reajustes concedidos para a área da segurança pública, que impactam a folha em R$ 4 bilhões até 2019”, diz o secretário da Fazenda, Giovani Feltes. Os aumentos foram concedidos no último ano da gestão anterior, de Tarso Genro (PT), em 2014.
Para Azevedo, da PUC-RS, o atraso do pagamento afeta “principalmente os policiais que atuam na rua”.
O secretário Schirmer diz que, se dependesse dele, pagaria os salários porque entende o impacto da medida. “Compreendo as consequências negativas. Não há dúvida de que é um problema”, diz.
Para o secretário, o Estado precisa implantar políticas públicas permanentes, que não sejam modificadas a cada troca de governo. Uma dessas medidas, afirma o secretário, é a reposição do quadro de policiais.
A medida é urgente. Em 2015, 2.099 policiais militares foram para a reserva. Neste ano, 1.732 militares já deixaram o serviço. Os dados foram passados à reportagem pela Associação dos Servidores de Nível Médio da Brigada Militar (Abamf).
“Não há plano de carreira, o governo está sempre mandando projeto [à Assembleia] para perdermos direitos. Isso desanima o policial militar”, diz Leonel Lucas, presidente da Abamf.
Para Lucas, o parcelamento de salários não é a principal razão da fuga dos militares, porque mesmo na reserva eles continuam recebendo os salários parcelados.
O governo irá convocar cerca de 2 mil aprovados em concurso para a Brigada Militar (a PM gaúcha) até 2018.
Além disso, desde o final de agosto, 136 agentes da Força Nacional, departamento federal com policiais de grupos de elite dos Estados, estão trabalhando em Porto Alegre. O governador pediu a ajuda federal diretamente ao presidente Michel Temer.
Sistema carcerário
Os especialistas também apontam o déficit e as péssimas condições do sistema carcerário gaúcho como fator relevante no controle da criminalidade. Azevedo critica, inclusive, a política do aumento de prisões implantada pelo atual governo.
“No último ano e meio, o número de presos passou de 28 mil para 34 mil. Essas prisões acabam se tornando centro de reunião das facções que articulam seu mercado, disputam território e fazem acerto de contas”, comenta o sociólogo.
Do total dos 34.863 presos atualmente, somente 0,44% terminou a faculdade, de acordo com a Susepe Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe).
Além disso, uma minoria está presa por crimes de homicídio, o tipo que mais assusta a sociedade. Apenas 3% estão presos por assassinato, de acordo com Rolim.
“É um amontoado de gente. Mistura [preso] com índices de periculosidade diferentes. Larga o iniciante com o chefão”, comenta o secretário de segurança.
Somente no Presídio Central, em Porto Alegre, são 4,7 mil presos para 1,8 mil vagas. O problema é antigo. Na gestão anterior, de Tarso Genro (PT), uma ala precária foi demolida, mas nenhuma foi construída para compensar.
O governo Sartori diz que trabalha para aumentar o número de vagas no Estado. Por meio de uma parceria com uma rede de supermercados gaúcha, o governo receberá a construção de um prédio com mil vagas prisionais em troca de um terreno em área nobre.
Enquanto isso não ocorre, o Presídio Central é dominado por facções que ocupam galerias – não há celas. Agentes penitenciários e policiais apenas atuam do lado de fora das galerias, não podendo entrar nas áreas dominadas pelas facções.
“Os presídios se transformaram em elementos de organização do crime”, diz Rolim.
* Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados