A vó que amava os gatos

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva a uma certa Ilha (sei o nome, mas se o cronista não disse, não digo) onde mora uma vó cercada de gatos por todos os lados. Aliás, neste 08 de agosto comemora-se o Dia Internacional do Gato. Foi em razão disso que nosso cronista se inspirou? A saber.

Como o pensamento voa, muitos que conhecem a Ilha e as avós de lá podem até pensar que ele se baseou em uma figura real. Mas arrisco a dizer que ele pegou um pouquinho de cada vó que temos, tivemos ou teremos para contar esta bela história. A saber. (Washington Araújo)




“Minha vó Teresina morava numa ilha em forma de gravata-borboleta. Ali era um lugar especialmente feliz porque, como não era permitido o tráfego de carros, os seus muitos mil gatos não precisavam queimar suas sete vidas à toa. Pelo menos, era o que ela nos dizia.

As manhãs eram assim: gatos, muitos gatos, no quintal coberto de folhas amarelas que nem em casa de flautista (onde sempre é outono). Por debaixo do tapete de folhas, o chão era verde-musgo quase em sua totalidade. A luz do sol subia mansamente pela escada, deslizava pela parede amarelo-gema, ia bater ao pé da soleira. A gente mirava a doçura das frutas.

As roupas no varal bailavam por vezes como que ao som de uma marcha-rancho: “Bandeira branca, amor…”, a vó solfejava. Mas isso era mais tarde, não era?

E quando era dia de limpar o tapete velho, o que só faltava voar? A poeira que saía do tapete dançava ao sol um balé esquisito, parecido com o que se vê num caleidoscópio. Quando num dia um de nós lhe perguntou o que era aquilo a vó respondeu sem pestanejar que era a Via-Láctea. E ficou assim combinado.

Só foi dar problema mais tarde quando eu disse à professorinha que conhecia, além do Sistema Solar, a Via Láctea, que foi a avó Teresina que disse, que minha vó não mente.

Se o neto um dia se tornasse cineasta, se escrevesse as suas memórias, ele iria se recordar desta cena, a que ele chamaria de Big Bang na ilha? A saber.

Além de gatos, havia uma coleção de muitas coisas (a de fotos eram lindas. Quem são, quem eram?), inclusive de fitas cassete. Só que visitas ao acervo não eram lá recomendáveis. O deslumbramento de ver sair do casulo de plástico uma tripa marrom (“Será que dá pra fazer rabiola de pipa? Não, é muito fina”, dizia o coração se desapontando) só rivalizava com a cara da vó quando pegava criança fazendo arte.

Quando a fita era de artista vendido, ela até incentivava, às gargalhadas, a gente a estragar a fita. “Vai, vai, que esse não vale nada – ela dizia – não sei porque tem fita dele aqui”.

Mas se a coisa fosse boa, aí não tinha jeito, ela tentava consertar. Quando dava, ela arrumava um pedacinho de Durex e fazia uma espécie de cirurgia: punha cuidadosamente a fita de volta na caixa com o auxílio de uma caneta; descartava o pedaço que estava amassado; cortava um pedacinho de Durex com o que emendava as duas pontas. A música ia dar um salto quase imperceptível, mas era melhor que nada.

Se o neto um dia se tornasse médico, se escrevesse suas memórias, ele iria se recordar destas cenas na Sala de Operação, a que ele chamaria de E.R. da ilha? Ou seria a emoção de ver um punhado de gatinhos, os bichos mais bonitos do mundo, com aquele jeitinho de bolinhos de pelo? A saber.

E quando era domingo de sol, mesmo sem ser domingo, e a vó acordava disposta a ouvir as músicas que fez e as músicas que os amigos fizeram em gravações muitas delas inéditas? Era um tal de buscar cracudinha na venda (Litrão por aqui não vingou), de comprar no vizinho sacolé de manga e de amendoim, de espantar moscas aqui e ali, de mandar descer um uísque-que-visita-gosta (“Isso não é enfeite, é pra ocasiões como essas”), uma do alambique, um guaraná Skol que não tinha mais em venda nenhuma (ainda melhor que o guaraná Antártica).

O pessoal ia chegando com os instrumentos. Todo mundo se espantando com a nossa altura. Saía comida de batalhão: feijoada, rabada, sarapatel, dobradinha, caruru, fritada de caranguejo etc., etc. Levava moca quem, na ingenuidade ou na sacanagem, se lembrasse do ditado segundo o qual velho e panela se acabam pelo fundo.

Se o neto um dia se tornasse artista, se escrevesse suas memórias, ele iria se recordar da espontaneidade dessas rodas a que ele chamaria de tempero da ilha? O samba começava devagar, como tinha que ser, até ficar cada vez mais bravo, bravo mesmo, de sambar em cima da cova dos covardes que quiseram um dia vender a alma do samba. A saber.

E as noites perfumadas, de azul-anil salpicado de estrelas, parecendo até piscina Tony coberta com plástico com criança dentro? Aqueles furos na cobertura parecem ou não com as estrelas no céu? E aquela pontinha de dor de cabeça de um dos adultos que passou do ponto na batida de limão (“Tu me faz um favor, me vai na farmácia e me traz uma aspirina? Pega a bicicleta.”)?

O desfile dos gatos no muro (às vezes até um gambá meio exibido se arriscava), os aromas da noite, um avião que passa nos avisando que não estamos sós. A gente só fecha a janela por causa de mosquito, que aqui não tem ladrão, que aqui é casa de subúrbio de contos da Carochinha.

Esse cricricri é grilo? Hoje não tem banho, que a água acabou. Passa um pano nesse pé, menino, que o lençol foi trocado outro dia. Só agora que reparei no cheiro do piso encerado (Cadê o saco de botões? Me deu vontade de jogar botão).

E para que esta casa ficasse suspensa no ar, com as lembranças da vó Teresina e de seus muitos mil gatos, o neto se formaria em arquitetura das nuvens? A saber.

Obs. A imagem da capa do post foi recolhida na Internet. Infelizmente, não sabemos o autor. Quem souber, favor nos informar.

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