Nos meus 20 e poucos ou 20 e tantos anos (faz tempo), terminei muitas madrugadas no Cervantes, tradicional bar e restaurante de Copacabana, tomando os últimos chopes (entre os melhores da cidade) de saideira e comendo um de seus caprichados sanduíches para aplacar a fome noturna. Não era um programa original. Desde 1955, quando a casa, na esquina da Prado Júnior e com a Barata a Ribeiro, foi aberta, boêmios costumavam terminar a noite da mesma forma. A boemia da área foi mudando, mas o Cervantes, seus chopes e seus sanduíches permaneciam.
Por Osacr Volpato, compartilhado de Projeto Colabora
Na década de 1950, quando o bar abriu as portas, a boemia era bem mais sofisticada. Além da vizinhança do mais chique hotel da cidade, o Copacabana Palace, o Cervantes ficava perto das badaladas boates da época: Vogue, Sacha’s, Plaza, lugares onde encontravam-se as estrelas da música, do teatro e do rádio, os finos representantes da alta sociedade carioca e os poderosos da política – o Rio de Janeiro era a capital da República. Alguns até apareceram para uma saideira no Cervantes, mas os frequentadores eram, na maioria, trabalhadores da noite: músicos, garçons, motoristas. A combinação chope-sanduíche era consumida encostada ao balcão.
A mudança da capital para Brasília, o crescimento desordenado de Copacabana e a marcação cerrada da ditadura militar sobre os artistas foram mudando o perfil da área e de sua boemia. As casas sofisticadas – a Vogue foi consumida por um incêndio – deram lugar a boates de “entretenimento adulto”, com shows de sexo ao vido, bailarinas de pole dance, garotas e garotos de programa e seus clientes. A Prado Júnior era o epicentro dessa nova boemia, daquela primeira parte de Copacabana, onde estavam La Cicciolina, Barbarella, Frank’s Bar, Sunset, Pussy Cat. As madrugadas permaneciam intermináveis enquanto se caminhava para o fim do século – e os sanduíches do Cervantes seguiam matando a fome de quem trabalhava até muito tarde em qualquer profissão.
O lugar cresceu, ganhou mais mesas, abriu um salão. Ao ficar balzaquiano, nos anos 1980, o Cervantes já era uma referência na boemia do Rio, com seu longo e variado cardápio de sanduíches e o chope bem tirado, além de novos pratos para paladares mais sofisticados e bolsos mais cheios. Misturavam-se ali boêmios de todos os tipos, atraídos pela certeza de encontrar o lugar sempre aberto.
As seguidas ondas de violência na cidade – multiplicadas pela notável incapacidade das autoridades do Rio de promover qualquer política sensata de segurança pública – foram provocando o esvaziamento da noite carioca, afugentando os boêmios, levando a crise para quem vive da noite, para quem vive à noite. Quando o novo século chegou, até as boates de “entretenimento adulto” andavam mal das pernas.
Outros bares notívagos da vizinhança da Prado Júnior – como o Nogueira e o El Cid – passaram a fechar mais cedo, o mesmo aconteceu com o Cervantes. Nas últimas vezes em que havia estado lá, talvez no começo da década passada, encontrei mais mesas vazias do que ocupadas. Os preços estavam mais salgados apesar de sanduíches e chope manterem a qualidade intacta.
A pandemia foi cruel com os bares e restaurantes desta cidade (e de todo o país): muitos fecharam, outros estão afogados nas dívidas contraídas para permanecerem abertos. Foi com tristeza, mas não com surpresa, que recebi a notícia, em meados do ano passado, do fechamento do Cervantes no seu tradicional ponto em Copacabana – a filial num shopping da Barra permaneceu. Felizmente, as portas reabriam. O empresário Antônio Rodrigues – proprietário da rede Belmonte – comprou o Cervantes, como antes já fizera com o Nova Capela, na Lapa, e o Amarelinho, na Cinelândia, outros pontos tradicionais da boemia carioca.
Era uma obrigação voltar ao Cervantes. A qualidade do chope ainda permanece, mas lamentei constatar que o sanduíche de pernil com queijo, meu predileto, não é mais o mesmo: trocou-se o pão canoa, esquentado na chapa, por um ciabatta, mais pesado e sem graça; o pernil segue suculento, mas o recheio tinha três vezes mais queijo nos velhos tempos. O cardápio encolheu, sem oferecer aquela variedade de sanduíches que fez a fama do restaurante. Mas nem tudo é saudade: há pratos executivos bons e fartos, a preços honestos. E mesas na calçada para aquela boemia vespertina depois da praia.
Desejo sorte ao novo modelo de negócio e torço pela recuperação do sanduíche. É bom ver de volta o balcão de Cervantes, que, novamente fechando de madrugada, tem como vizinhos o Galeto Sat’s e o Bar do David. A noite de Copacabana resiste: a poucas quadras dali, a rua Ronald de Carvalho vive um boom de novos bares. E não pude deixar de reparar que velhos hábitos não morrem: as boates Marrakech, Black Cat e Kalabria – “proibidas para menores de 18 anos” – garantem a permanência de outra tradição da noite da Prado Júnior