A volta do intrépito professor Alfredo

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E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, volta no tempo. Aliás quem volta à coluna e no tempo com seu fusca azul é o professor aposentado Alfredo. Vamos a mais uma aventura deste intrépito vovô.

Num almoço de domingo, o filho do Alfredo lhe pediu um favor: que ele levasse as crianças à escola na segunda seguinte. Alfredo ficou sabendo que o carro do filho passaria pela revisão de trinta mil quilometros, que o seguro está caro para caramba assim como o IPVA etc.





Tudo bem, Alfredo pensou e disse. Antes do jogo na tevê, lá foi o velho professor de Geografia fazer sua revisão a olho nu no fusquinha azul. Tirou a capa que protege o possante das intempéries; deu uma olhada no pneu; baixou o vidro das janelas para arejar o ambiente. E ligou o rádio, o velho rádio sintonizado desde sempre na Rádio MEC.


Lá pras 17h, isto é, antes do pipoqueiro passar pela rua com o fonfom da buzina, Alfredo colocou os netos no carro para, à guisa de dar uma voltinha pelo bairro antigo, calibrar os pneus. Aproveitou o ensejo para abastecer.


Os velhos frentistas, que conheciam Alfredos de outros carnavais, vieram até ele para trocar umas palavras. Os mais novos, um tanto assustados, se entreolharam: não tinham visto um carro desses em tal estado de conservação. Nossa! Que isso, fera!


As crianças sentem falta do ar-condicionado e das tomadas para carregar o celular. Mas afora isso, ficam deslumbradas em embarcar na velha nave. Sim, para eles é como uma viagem ao tempo. Pensando bem, não só o automóvel, mas a própria casa dos avós, os utensílios domésticos, os móveis, os quadros, os mapas, os globos terrestres, os livros. Não é que naquela casa existia uma biblioteca? E uma coleção de selos? E cartões-postais? E álbuns de fotografia? E até um Atari, que pertenceu ao papai? As crianças, sempre espertas, não achavam muita graça em feiras de antiguidades, preferindo ir à casa do vovô Alfredo.


Segunda-feira de manhã, lá estava o Alfredonni absolutamente impecável à porta do prédio de apartamentos pronto para levar os netinhos para a escola. As crianças embarcaram felizes da vida. Em poucos instantes estavam próximo à escola, com todos aqueles carros de hoje estacionando para desembarcar os pimpolhos e suas enormes mochilas de acampamento.


Pra que tanto caderno na mochila, meu Deus? Pergunta meu coração.
E foi aí que se deu a cena que testemunhou o nosso Alfredo:
Um enorme SUV se aproxima. Tem pressa. A buzina estridente chama a atenção de Alfredo, não só dele, de muitos. Nem adianta aumentar o volume do rádio, Alfredo, a competição é desleal, talvez seja breve. A buzina ressoa outra vez, ficando mais do que o devido na cabeça do velho professor de Geografia como se fosse um zumbido.

A despeito de tudo isso, Alfredo desembarca seus netos sem demonstrar incômodo. A mais nova quer porque quer dar um beijo na bochecha do vovô como sinal de agradecimento pela viagem no túnel do tempo feliz. Alfredo não consegue conter o riso quando ela disse que o avô dirigia bem mas em câmera lenta.


Ao chegar à sua casa, Alfredo deu dois, três toques na sua buzina. Só para conferir. Para ele, era quase música para os ouvidos. Buzina no dos outros é pimenta.


Depois de duas semanas, a criançada confessou entre uma garfada e outra que depois do dia em que o avô os levou de Fusca para a escola, foi um tal de gente aparecer com carro de filme de época que só vendo. Teve Passat, TL, Chevette, Opalão Diplomata, Brasília, Fiat 147, Corcel e até um tal de MP Laffer conversível. Teve velhinho todo tatuado que chegou de lambretta italiana. E outro, menos velho mas vintage, que chegou de Caloi 10 e outro de Berlineta. Um estouro.

Parecia até feira de carros antigos.
Absorto, Alfredo, o velho Alfredo professor de Geografia, imaginava a cena, quase deixando escorrer pelo queixo os fios da macarronada. Ele nem sabia que praticamente lançara um movimento: o dos carros dos vovôs.


Vovô viu um Volvo? Que isso! Isso não tem a elegância de um Alfredo, de um Alfa Romeo.
Um pouco depois de tal cena, veio uma buzina: o filho o perguntou onde estava a caixa com os cartuchos do Atari. Era que ele queria mostrar para as crianças quem era o rei do River Raid. Só Alfredo sabe em que caixas ficam essas coisas.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019),  Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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