A volta do professor para estudantes pobres

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“Na idade de vocês, a gente sempre procura a poesia quando tem uma desilusão amorosa. Então a gente lê e entende tudo”.

Por Urariano Mota, compartilhado de GGN




Em um texto anterior, sobre aulas para estudantes pobres, escrevi:

“Os alunos, tenho notado, aqui e ali se mostram menos ignorantes que este mestre. São mais sábios, apesar da idade, dos 15 aos 17. Assim tenho notado porque, aqui e ali, em lugar das lições de minha ignorância em advérbios, substantivos, orações (e todas as vezes em que sobre isso lhes falo, ou em que insensatamente me arrisco, sinto os olhos virados para o teto, à procura de uma interjeição, ou à procura do voo substantivo da mosca, que sempre pousa no melhor gênero de adolescente, sobre a coxa da mocinha ao lado)… como eu dizia, não houvesse a interrupção dos parênteses, aqui e ali, em lugar das grandes lições da norma culta, que sempre repito como um papagaio, eles me pedem que lhes conte uma história. Como são sábios!, reconheço, aliviado. Uma história, sim, uma história boa, verdadeira, de preferência acontecida com o mestre, que não possui o talento precioso de contá-las, mas possui a vantagem de ser o seu personagem, o que vale dizer, o personagem do mestre é um sujeitinho ridículo que já vem pronto. Mas antes do começo, uma vez que são um desvio do programa, é preciso um gancho. Como nesta semana.

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– Professor, pois assim me chamam, professor, eu não consigo entender poesia.

Então respondo, para todos os adolescentes pobres da sala, iguaizinhos a um ser que fui um dia.

– Na idade de vocês, a gente sempre procura a poesia quando tem uma desilusão amorosa. Então a gente lê e entende tudo. Vocês já tiveram alguma? Não?! Nunca receberam um fora, nunca foram rejeitados por quem vocês amavam? Hem? (Silêncio em palavras, mas seus olhos tristes confirmam. E por isso desarmo a sua tristeza, insinuando-lhes a minha.) Pois eu já. Isso já me aconteceu. Mas é uma história, nosso tempo é pouco…. vamos ao programa.

– A história, a história, professor!, pedem-me, os rapazes porque desejam rir, as mocinhas porque desejam chorar e rir:

– A história, por favor…

E por isso começo. Foi assim.

A moça que me revelou a poesia era a filha de um professor. Ela me revelou a poesia de um modo indireto, ou muito direto, vocês vão ver. Ela era bonita a partir do nome, que não vou dizer. O seu nome era um daqueles que são o feminino de um nome de homem, que ficam belíssimos quando se traduzem para a mulher. (“Antonia, Amarilda”, os gaiatos me gritam.) Não, estes não, não adianta, não vou dizer. Pois bem. Ela possuía um moreno hindu, uma pele morena de uma paquistanesa, que até hoje não esqueço. (Sinto que vou me perder.) Pois bem. No começo, eu ia à casa do professor pelo professor. E aqui e ali, para pegar o almoço também, em dias de domingo. O professor, como era um grande humanista, sabia que a melhor humanidade era alimentar um estudante com fome. No começo. Depois, quando a vi, passei a ir, todos os fins de semana à casa do professor, pela filha também. Mas eu não podia amá-la ainda. Eu ali chegava em estado de necessidade, sem dinheiro, somente com a passagem de volta, às vezes nem isso. Acho que foi a partir daí que nasceram as minhas qualidades de andarilho. Pois bem. Naquele estágio eu não podia amá-la. Vocês sabem o que é isso: é não ter dinheiro para convidá-la para um cinema, é não ter com que comprar um chocolate, uma pastilha boa, daquelas que refrescam o hálito com um perfume e um frescor que se sentem à distância… Vocês entendem. É muito difícil ter direito ao amor quando a gente não tem nada. Vocês me entendem. (Os olhos deles ficam mais tristes. Por isso, dou-lhes um tapa com um desvio rápido.) Mas aí eu arrumei um emprego. Sim, comecei a trabalhar. Mas me faltava a coragem. Vejam vocês. A sala de estar da casa do professor era uma biblioteca. Sentem o que é isso? Em nossas casas a sala de visitas é onde se exibe o nível financeiro do dono – bons móveis, boa televisão, excelente som, sofás… um bando de quinquilharia. Na casa do professor, não, e agora digo o nome dele, o dele deve ser dito: Arlindo Albuquerque, humanista professor de francês e português do Colégio Alfredo Freyre, em Água Fria. Na casa dele, não: os livros se ostentavam em toda a sala de entrada da casa. Pois bem. Ca… quase eu digo o nome dela, a minha namorada, a minha enamorada… enquanto o professor não vinha, me recebia com um shortinho, com as suas pernas morenas de enlouquecer, a estudar livros de medicina. (Os olhos dos adolescentes brilham.)

Mas eu não tinha coragem. Quanto mais a queria, mais me fechava. É claro que ela percebia isto. Pois bem. Acontece que nessa ocasião um amigo nosso arruma o seu primeiro emprego. E por essa felicidade todos deveríamos comemorar, e comemorar era beber, beber, e cantar. O que fizemos. O certo é que na volta, os que vinham em cima da caminhonete, eu e outros, numa curva maldita fomos arremessados ao chão. No que recuperamos de imediato a lucidez. Ficamos bons, do susto. Pois bem. Esse incidente, com absoluta impropriedade, foi contado a ela, ou melhor, com absoluta propriedade, porque ocupava o lugar do que não se podia dizer: que eu era e estava louco por ela. (E nesta altura eu não lhes conto o quanto havia de loucura, em razão da existência de castas numa sociedade de mestiços, o quanto era impossível esse amor.) Pois bem, foi contar o incidente e ela rir, sorrir, gargalhar, gargalhar como as vilãs de novela de televisão, aquelas vilãs bonitas que desprezam os mocinhos virtuosos, que não têm no cu o que periquito roa.

– Conhecem a expressão “não ter no cu o que periquito roa”? Essa expressão (sinto o ar de desalento para qualquer exegese)… Pois bem. O seu riso me chocou, e por isso tentei um poema em prosa. Dizia… “Uma mulher distante, de moreno hindu, com os olhos amendoados passeia sobre a minha vida. Januária distante, Januária sem janela, ela sorri e zomba de pretendentes que caem bêbados de caminhonetes… Que não sorria tanto, que não posso ficar assim, indefinidamente à espera dessa mulher que me tomou a vida”. Então que fiz eu? Saibam, a insensatez é uma marca da sua idade. Que fiz? Numa bela tarde, vou à sua casa, e na saída, ao portão, entrego-lhe esse escrito, e corro, e saio correndo, acreditam?, corri para bem longe dela, sumi, fui. E assim se passaram três meses, três vezes longos 30 dias suportei, até uma certa manhã em que volto. E entre nós se passa este breve diálogo:

– Você leu?

– O quê?

– A poesia … (“a inocência é uma arte!”, eu me digo.)

– Ah, aquilo?

– Sim, engulo, “aquilo”.

– Ah, eu não sei ler poesia.

Então ela me ensinou ali o que era e o que não era poesia, então ela me disse ali que a poesia não atravessa a pele de quem é imune ao sofrimento de outros. Vocês não imaginam o quanto me atirei à leitura dos poetas. Vocês percebem?

Eles percebem, entendem, ficam sérios, sorriem. Não sei se isso é pedagógico, não sei se isso vem a ser uma boa aula de português, nem mesmo sei se isso é longinquamente educativo. Não sei. Mas estas minhas histórias para adolescentes pobres têm tido um grande sucesso. Eles sempre me pedem outra”

Pois bem. Nesta semana, aconteceu o maravilhoso. Walker Luduvice me enviou mensagem pelo Face, e pude retomar, atualizar o que foram aquelas aulas de 2004. Faz vinte anos Fala, Walker!

“Nas aulas de Português com o professor Mota, estávamos Walker Luduvice Paulo Sobrinho Ivana, Tatiane, Jefferson e Camila, entre outros Era uma aula totalmente diferente de algo convencional. Pois nós em simples conversas discutíamos sobre erros e acertos da norma culta da língua portuguesa. Qualquer verbo colocado errado em uma frase, tínhamos que conjugar. As risadas eram inevitáveis, pois todos nós errávamos em algo. No entanto, aprendemos a importância da leitura como grande desenvolvedor da escrita e da fala. Compartilhamos experiências de vida, tornando cada semana inesquecível. Obrigado Urariano Mota, pelas aulas aos Menores aprendizes do Banco do Brasil.

Mota, em literatura eu me lembro que eram trechos de alguns livros famosos como Dom Casmurro, A moreninha, A viuvinha, A vida de adolescentes pobres, leitura de texto que o senhores escreveu e levou pra turma. Temas sobre nossas conversas, o senhor pediu uma redação sobre o primeiro beijo. Falou sobre as diferenças das línguagens coloquial e norma culta.

Os significados das palavras de acordo com contexto da frase.

Tínhamos 16 anos na época. O ano era 2004. Atualmente tenho 35 anos.

A menor do Setap  era Ivana. Era evangélica. Mas bem doidinha. Agora tinha Tatiana que era bem sofrida também.

De Tatiana perdi o contato. Ivana, eu soube que casou, teve filhos e se separou há pouco tempo.

Paulinho, o Paulo Sobrinho está nos Estados Unidos. Jefferson, faz móveis planejados e está casado com a namorada dele desde daquela época e tem filhos. Ele mora nos Coelhos. Camila, não tenho notícias”

E como os alunos me viam? pergunto. Walker responde: :

“Achávamos o senhor, de modo geral, engraçado por conta da sua barba. Pois lembrava o Ed Mota. Mas muito inteligente e ganhou a cada aula nossa admiração e gratidão pelas lições e incentivos aos estudos.

Para mim, até a data de hoje, foi o melhor professor de Português, e melhor conselheiro e amigo. Como funcionário, um dos melhores dentro muitos funcionários exemplos que existiam lá.

Igual ou diferente de vocês? O professor era da mesma origem de vocês, como me viam? pergunto.  

“Sim. Com toda a certeza. Falávamos abertamente as nossas experiências, porque sabíamos que o senhor entendia exatamente nossas dificuldades.

Essa era a diferença que tinha o senhor dos outros funcionários, que eram predominantemente nascido em berço de ouro”.

Tive alguma influência sobre suas vidas? pergunto.

“Sim. Na minha. Pois compreendi a importância de falar bem e escrever bem. Hoje, sou analista de Operações, cargo no qual me apresento mensalmente e preciso falar meus resultados todos os meses. E devo escrever bem os e-mails enviados. O português bem dito faz parte do meu dia a dia”.

Nesta altura, eu ia pedir a Walker uma chamada de vídeo. Mas não pude mais não.  Fiquei muito emocionado. E Walker concluiu:  

“Meu amigo, muito obrigado. Os ensinamentos levo comigo até hoje. Muito obrigado.”

Walker e demais alunos talvez não saibam, mas eles foram os melhores alunos que tive até hoje. Alunos? Não. Professores de conhecimento da vida, da vida e vida.

*Vermelho https://vermelho.org.br/coluna/a-volta-do-professor-para-estudantes-pobres/

Urariano Mota é escritor e jornalista. Autor do “Dicionário Amoroso do Recife”, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude” (traduzido para o inglês como “Never-Ending Youth”). Colunista do Vermelho e do Brasil 247. Colaborador do Jornal GGN.

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