Por Sergio Saraiva, publicado no Jornal GGN –
No ambiente de anomia institucional em que vivemos, tudo do que não precisamos é da volta da indisciplina militar.
Que não reste dúvidas, é muito grave a fala do general Antonio Hamilton Mourão considerando a possibilidade de uma intervenção militar caso o “Judiciário não solucione o problema político”. Trata-se, em última análise, de um ultimato à nação. Uma postura incompatível com um oficial da ativa e com sua obrigação para com a legalidade.
A técnica de “emparedamento”
E é também um claro ato de indisciplina. Indisciplina dirigida ao seu superior hierárquico – o comandante do Exército – general Eduardo Villas Bôas. Seria também um ato indisciplina ao Ministro da Defesa e ao Comandante em Chefe das Forças Armadas – o presidente da República, mas creio que, no caso, o general Hamilton Mourão os considere partes do “problema”.
Tal indisciplina é conhecida pelo nome de “emparedamento” e foi muito comum durante toda a ditadura de 64. Trata-se de um desafio calculado à hierarquia. Ocorre quando um grupo de interesses dos militares sente-se forte o suficiente para impor-se ao comando.
Normalmente, nesses momentos, um oficial general verbaliza “oficiosamente” a posição do grupo de interesses. E desafia o superior a se posicionar.
Caso o general que representa o grupo de interesses seja punido – e é isso que deveria ocorrer – o comando fica desgastado com o grupo e se inicia um processo sub-reptício de corrosão da sua autoridade. Caso o superior não puna a indisciplina, perde o comando e o grupo de interesses se interpõe.
Para não ser emparedado, o general no comando deve não apenas punir o desafio à sua autoridade como também impô-la aos comandados de sorte a não restar dúvidas sobre quem está efetivamente comandando.
O jornalista Elio Gaspari descreve dois casos clássicos de “emparedamento” em sua série de livros sobre a Ditadura de 64. No primeiro caso, em 1966, o general presidente Castelo Branco foi desafiado por seu ministro do Exército – Costa e Silva, em uma reunião do Alto Comando das Forças Armadas. Castelo foi aconselhado, em particular, pelo General Geisel a dar voz de prisão a Costa e Silva ali mesmo e não o fez. Costa e Silva tornou-se o presidente. No segundo caso, em 1977, em situação análoga, o general Geisel, no posto de presidente da República, não teve dúvidas em demitir seu ministro do Exército – o general Silvio Frota. Geisel terminou seus dias de presidente inquestionado.
Silvio Frota, por certo, queria ser o próximo general presidente. Para tanto, era necessária a manutenção da ditadura. O grupo de Geisel havia decidido pela volta dos militares aos quartéis. Um dos seus motivos era justamente a indisciplina militar que a manutenção da ditadura, paradoxalmente, acabou por promover.
A volta dos “vacas fardadas”
Voltemos agora ao caso do general Hamilton Mourão. Quem assistiu ao vídeo da sua palestra na maçonaria não tem porque acreditar que o general foi pego de surpresa por uma pergunta impertinente e acabou por se expressar mal. Muito pelo contrário, o general fez questão de ser didático a respeito dos planejamento do Exército para a situação de uma intervenção militar.
Há ainda uma faceta muito preocupante da sua fala. Hamilton Mourão mostra-se como um ressentido. Vitimiza-se das críticas e cobranças que o Exército recebe por sua participação na Ditadura de 64. Cobra-se das Forças Armadas a responsabilização por torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres dos resistentes. Mas o general parece ver nessa tentativa de responsabilização algo como um ato de ingratidão ao Exército pelos “serviços prestados” à nação.
Caberia ao general Eduardo Villas Bôas – comandante do Exército – punir Hamilton Mourão e esclarecera população sobre os planos do Exército em relação à manutenção da legalidade.
Mas, ao que tudo indica, que o general Villas Bôas foi emparedado.
Ao invés de um comunicado oficial, optou por uma entrevista ao jornalista Pedro Bial da TV Globo. Pedro Bial não cuida da ordem do dia do comandante do Exército. Na entrevista, Villas Bôas descartou qualquer punição e ainda confraternizou com o desafiante ao chamá-lo de “grande soldado, uma figura fantástica, um gauchão”. Por mais que sejam conterrâneos, o general Hamilton Mourão é seu subordinado – deve-lhe continência e obediência.
O general Geisel não confraternizou sequer com seu irmão.
Sendo assim, é o general Hamilton Mourão que está no comando. Tanto é, que seu comandante passou, como ele, a ver na constituição coisa que lá não há: uma autorização para intervenção das Forças Armadas movida por vontade própria. Uma intervenção das Forças Armadas que ocorra sem ser expressamente por iniciativa dos Poderes Constitucionais tem um nome: golpe militar.
O general Hamilton Mourão é um burocrata do exército. Burocratas podem até conspirar – e que aqui não se o acuse de estar conspirando; pode tão somente ter manifestado indevida e publicamente sua insatisfação e seu inconformismo pessoal ou de seus companheiros – mas burocratas não dão golpes comandando apenas as suas mesas. Os golpes são dados pelos “vacas fardadas” – como se definia outro general Mourão – o general Olímpio Mourão Filho – que comandam as tropas e, portanto, têm o poder de intervenção efetivo. Foi o general Olímpio Mourão quem, no comando das tropas em Minas Gerais, iniciou o golpe de 64.
Dos atuais “vacas fardadas” nada ouviremos. São discretos e disciplinados. Mas isso não significa que estejam indiferentes ao acontecimento. Em 64, romperam a legalidade. Em 77, apoiaram o presidente. Um era civil, outro militar.
De qualquer sorte, melhor seria se esse assunto não mais fizesse parte das nossas preocupações cidadãs.
Vivemos um período de anomia. Períodos de anomia não se caracterizam pela falta de comando e sim pela existência de múltiplos grupos buscando estar no comando.
Temos o grupo de Temer, no Executivo e no Legislativo em “um grande acordo com o Supremo, com tudo” buscando “estancar a sangria”. Temos procuradores criticando ministros do Supremo. Temos grupos que vão de meninos a delegados e juízes definindo o que é arte autorizada e o que é degeneração. Temos juízes definido o que é prerrogativa de profissionais da saúde.
Temos juízes e desembargadores definindo em quem poderemos votar nas próximas eleições.
A sociedade civil se debate em busca do caminho de volta à sua normalidade democrática.
Tudo deve que não precisávamos, nesta hora, é da volta da indisciplina militar e dos seus “vacas fardadas”.
PS: Oficina de Concertos Gerais e Poesia na arquibancada para, qualquer momento, ver emergir o monstro da lagoa.
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