Publicado em El Pais –
Até sexta-feira, diversidade da Flip era algo mais aferível por números, até que a professora falou
Ao levantar ofegante, já emocionada, tremendo pela coragem repentina que lhe fez erguer o dedo e pedir a fala na manhã desta sexta-feira durante uma mesa na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Diva Guimarães, 77, estava – como ela própria diz durante um almoço neste sábado – esconjurando, compartilhando e vingando-se de uma história que lhe perseguia há 72 anos. Em sua intervenção, acompanhada de aplausos e choro dos palestrantes Lázaro Ramos e Joana Gorjão Henriques, falou sobre o dia em que, aos seis anos, deixou de ser criança depois do sermão de uma freira do colégio interno em que estudava no interior do Paraná.
Deus, na fantasia da religiosa, havia criado um rio para que todos se abençoassem. Uns, laboriosos, teriam chegado primeiro e, ao se banharem, ficaram brancos. Outros, preguiçosos, demoraram-se e encontraram um rio já atolado em lama escura. Estes, puderam apenas lavar as palmas das mãos e as plantas dos pés, ficando com todo o resto do corpo preto. O que a freira dizia é que a cor da pele de Diva era um verdadeiro estigma, a denunciar lassidão, moleza, falta de moral. Tudo poderia ser resumido em uma palavra: racismo. Mas uma palavra não basta.
“O racismo é para além da pele. O racismo nos adoece, porque é muito difícil a gente se manter emocionalmente. Você ter chorado naquela hora [em que fazia a intervenção] é porque nossas vozes estão engasgadas desde sempre”, disse a escritora Conceição Evaristo em um encontro com Diva pouco antes da hora do almoço deste sábado. Lembrando da conversa com a autora e de tudo que está acontecendo na Flip, Diva ressalta que não havia se preparado para falar coisa alguma na sexta-feira. “Mas ao ver Lima Barreto homenageado, ao ouvir a fala do Edmilson Pereira [autor que abordou a questão racial no evento], ao conhecer a história da moça de Ruanda [a autora Scholastique Mukasonga] que perdeu toda sua família no genocídio, eu senti que precisava dizer algo também”.
A ideia inicial, diz enquanto espera seu spaghetti bolonhesa, era conseguir falar apenas com Lázaro Ramos, mas, ao ter a oportunidade de fazer uma pergunta durante a mesa do ator, acabou usando o espaço para dizer tudo que precisava. “Foi minha oportunidade, meu momento”. Menos de 24 horas depois, a filmagem de sua intervenção já tinha sido assistida mais de 5 milhões de vezes. Na rua, ela tem sido reconhecida por todos. Diva é paciente. Está feliz. Para, conversa, abraça, tira sefiles. As pessoas querem dizer que o que ela fez foi fundamental, que ela é, de fato, uma diva. E, desde sexta-feira, ela tem uma palavra para todos. Mas quer deixar bem claro: “Não sou boazinha assim, eu tenho raiva, ódio mesmo, e falei o que falei também por causa disso”, diz ao explicar que detesta ser vista com comiseração.
Até a manhã desta sexta-feira, a diversidade da 15ª Flip ainda era algo mais aferível por números do que concretamente. Sabia-se, por exemplo, que pela primeira vez havia mais autoras convidadas do que autores. Sabia-se também que 30% dos escritores da programação oficial eram negros e negras. Ao falar, Diva Guimarães fez de tudo isso algo palpável. O resultado é que deixou uma cidade emocionada, mas, mais do que isso, desorientada. Foi como se tivesse oferecido um espelho para uma pessoa que nunca vira seu reflexo. “Parece que deu um erro, uma tela azul do Windows na cara das pessoas. A Diva contou a nossa história, a história de todos os negros, e deixou claro como os brancos não sabem lidar com isso”, disse uma ativista do movimento negro em uma conversa informal com a reportagem do EL PAÍS.
“O escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana tem um conto chamado ‘As Mãos dos Pretos’ em que narra a história de uma criança que quer saber porque as palmas das mãos dos negros são brancas e recebe como resposta diferentes variações da história que Diva ouviu da freira”, diz Claudia Fabiana, professora e pesquisadora de literaturas de língua portuguesa, que está na Flip. Em uma delas, relembra, um professor da personagem explica que é porque os negros, até pouco, andavam de quatro, como os bichos. “O que a Diva fez foi contar uma história comum a todos. Quando você dá o microfone para a Diva, dá o lugar de fala para ela. Se só tiverem autores brancos, só vai ter uma história e, por isso mesmo, só uma literatura, um conhecimento”, argumenta Claudia.
Em um ambiente quente e polarizado no país, há uma crítica que reverberou na internet nos últimos dias que diz que essa edição da Flip teria se esquecido da literatura para se tornar só política. Claudia rejeita a ideia. Para ela, a literatura está no centro de todo o debate da Festa e o argumento contrário ao evento parte do princípio de que a experiência compartilhada do negro, que está presente muito mais na oralidade, é menor ou pior. “O que a Diva fez foi contar uma história que poderia ou não estar em um livro, mas que é um conhecimento oral e não é por ser oral que é menor”, diz. Em entrevista ao EL PAÍS nesta sexta-feira, Conceição Evaristo disse algo semelhante: “Não nasci rodeada de livros, mas de palavras”. Tudo pode dar em literatura ou ser literatura.
No almoço, Diva conta que ainda criança chegou à cidade de Cornélio Procópio, no interior do Paraná, com a mãe, que era lavadeira em diferentes casas do município. Pouco depois, aos cinco anos, foi recolhida por uma missão católica para estudar em colégio interno. A coisa, diz, funcionava assim: a Igreja dava educação, as crianças, em paga, trabalhavam para a instituição. Tudo muito mascarado de boas intenções. Aos 21 anos, pegou um trem que demorou 24 horas para chegar a Curitiba. Lá, passou frio com uma manta “corta febre” – “dessas que o prefeito de São Paulo anda distribuindo para os mendigos da cidade” – arranjou trabalho, estudou, entrou no curso de educação física na Universidade Federal do Paraná. Foi a única negra da instituição. Virou “cobra” no atletismo, jogou basquete, arremessou peso, nadou, formou-se. Tornou-se professora. Nunca esqueceu a freira.
E a freira, explica, não está apenas na história de sua infância, mas na diretora da escola que um dia lhe disse que “se negro não faz sujeira na entrada, faz na saída”. Está no fato de que no Sul do país muitos negros aprenderam alemão em suas escolas por causa dos imigrantes europeus, mas que os brasileiros não aprenderam sequer uma vírgula sobre a África. Está também em todos os olhares de desconfiança que já recebeu. Está até mesmo nestes dias em Paraty, quando uma mulher lhe disse “talvez achando que me elogiava, que meu coração é branco”. Ou ainda na pergunta de um repórter que queria saber quanto Diva ganhava. “Eu não sou vítima! Porque estão me perguntando do meu salário? O que isso tem a ver?”.
Na rua do Fogo, distante algumas quadras do restaurante, onde está a casa da editora Malê – termo usado no Brasil no século XIX para designar a população negra de origem mulçumana que sabia ler e escrever em árabe –, Vagner Amaro, seu fundador, também comenta a intervenção de Diva. “Eu venho à Flip desde o começo e não via meus pares. Vivi essa situação inúmeras vezes. Por que essa edição tem muito mais presença de negros no público? Porque nós nos reconhecemos nessa programação. Ela chamou as pessoas”, comenta. A Malê, fundada em 2015, é dedicada à literatura afro-brasileira e é o selo de autores como a própria Conceição Evaristo. “Acho que a Diva falou porque se sentiu empoderada pelas palestras e pela presença de seus pares”, reflete Amaro.
Formada em educação física, Diva, contudo, sempre foi uma apaixonada por literatura e Conceição é uma de suas preferidas. Não à toa, ficou tão emocionada quando recebeu a visita da escritora neste sábado. “Sempre procurei ler literatura de autores negros, mas também ouvir suas histórias”, conta. O que faz lembrar que desde que a programação da Flip foi anunciada, há um comentário recorrente que diz que mais importante do que “trazer autores negros é formar leitores negros”. Uma variante da mesma ideia diz que “não faltam só autores negros em Paraty, mas também público negro”. Para Amaro, Diva é a prova viva da mentira dos argumentos. “O leitor negro no Brasil, a literatura negra no Brasil, não nasceu agora”, argumenta.
Segundo o editor, as pessoas se sentem livres para falar sem conhecimento, como se o mundo em que elas vivem, fosse todo o mundo. “A Malê, por exemplo, tem livros em terceira, quarta edição, outros esgotados, e temos pouco tempo de vida. Não há leitores negros ou os eventos, como a própria Flip fazia, não dão espaço para que esses leitores possam se reconhecer?”, diz Amaro. Para ele, há gerações anteriores de leitores e escritores, como a da própria Conceição, além de uma juventude nova que teve mais acesso à formação, e que está tão bem representada em mobilizações na internet e projetos que não param de surgir – como sua própria editora.
Cabelos curtos presos em tranças, Diva contou, enquanto se equilibrava com sua bengala nas pedras das ruas históricas da cidade fluminense – “toda construída por meus antepassados escravos” –, que só perdeu a raiva de Deus quando compreendeu que Jesus não era o da freira de sua infância. “Ele não tinha olhos azuis e nem cabelo loiro, seria impossível”. No espaço de um quarteirão entre o restaurante e a casa para onde foi à tarde para participar do lançamento de um catálogo de intelectuais negras, organizado por pesquisadoras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Diva foi parada mais umas tantas vezes para tirar fotos e conversar. Chegando ao evento, encontrou um espaço completamente lotado, com mais de 300 pessoas se espremendo. Ao passar a soleira da porta, foi ovacionada e, mais uma vez, se emocionou.