A voz dos mortos pela violência policial

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Mulheres que tiveram filhos ou outras pessoas da família assassinados por policiais falam sobre Marielle, chacinas e intervenção federal

Mulheres que tiveram filhos e outras pessoas assassinadas pela polícia protestam, na pré-estreia do filme, no Rio. Foto: Luis Felipe Romano | divulgação
O protesto das mulheres, lembrando seus parentes mortos por agentes do Estado, na pré-estreia do filme, no Rio. Foto: Luis Felipe Romano | divulgação

Mais de uma década após perderem entes queridos, elas vêem poucas mudanças quanto a crimes que envolvem agentes do Estado. Retratadas no documentário Nossos Mortos Têm Voz, da Quiprocó Filmes, mulheres que tiveram familiares assassinados na Baixada Fluminense contam que vêem com preocupação a intervenção federal no Rio. As mais recentes chacinas no estado, na Rocinha e em Maricá, além da morte de Marielle Franco, vereadora do PSOL no Rio de Janeiro e homenageada na estreia do filme, diminuíram a esperança delas na queda da violência.

Silvana Azevedo, de 39 anos, estava em casa de pijama quando foi avisada pela amiga de infância sobre os tiros no lava-jato do seu irmão. Foram poucos minutos entre colocar uma camiseta e ver o corpo de Renato Azevedo, 30, de bruços, já sem vida. Ele foi um dos mortos na Chacina da Baixada, em 2005, quando 29 pessoas foram mortas em Nova Iguaçu e no município onde vive Silvana, Queimados. Onze policiais militares foram denunciados e cinco foram condenados, o que deixa certa sensação de impunidade juntos aos familiares, e descrença quanto à redução da violência com a intervenção federal.




Em cada cadeira do cinema o nome de uma vítima. Foto: Divulgação
Em cada cadeira do cinema o nome de uma vítima. Foto: Divulgação

“Esta intervenção é política, não muda nada, não. Em Queimados, eles todos sabiam quem fazia isso. Tem delegacia, quartel. Nesse dia, quando mataram o primeiro, o filho da Luciene, na Dutra, você acha que não passou um carro da polícia, o quartel não ficou sabendo, ninguém ficou sabendo?”, questiona.

Quem morre e tá sendo preso é o negro pobre e favelado. Não tem que morrer ninguém. A bala que atravessa o corpo do nosso filho, atravessa nosso corpo e atravessou o da Marielle. Quando a segurança pública é usada politicamente, isso só faz com que morram os mais fracos, que somos nós

Luciene Silva
Mae de Raphael, assassinado aos 17 anos

O filho de Luciene Silva, 52, ao qual Silvana se refere, se chamava Raphael Silva Couto e tinha 17 anos quando foi assassinado na chacina. O adolescente seguia para casa de bicicleta com amigos, após sair para cortar o cabelo, quando foi atingido por disparos, em Nova Iguaçu. De dona de casa, Luciene virou uma ativa militante pelos direitos humanos, tornando-se amiga de Marielle Franco, um ano depois do crime.

oana D'arc viu seu filho ser morto por policias: "Não suporto tanta dor". Foto: Divulgação
Joana D’arc viu seu filho de 16 anos ser morto por policias: “Ninguém toma uma iniciativa, não acontece nada“. Foto: Luis Felipe Romano/Divulgação

“Devo isso ao meu filho e a esses jovens que estão morrendo. Você vê as fotos dos meninos e a dor das famílias, volta tudo. Toca muito a gente”, diz ela, quando questionada sobre as chacinas na Rocinha e em Maricá. Ela também fala sobre o forte impacto provocado pela execução da vereadora. “Fiquei muito mexida. Quem morre e tá sendo preso é o negro pobre e favelado. Não tem que morrer ninguém. A bala que atravessa o corpo do nosso filho, atravessa nosso corpo e atravessou o da Marielle. Quando a segurança pública é usada politicamente, isso só faz com que morram os mais fracos, que somos nós”.

Penso se devo continuar. O caso da Marielle também mexeu muito comigo, por ela estar nos ajudando na luta. Todos os dias morrem jovens. Eu não aguento, não suporto tanta dor. Ninguém toma uma iniciativa, não acontece nada

Joana D’Arc Mendes
Mãe de Flávio, assassinado aos 16 anos

A voz sai embargada quando Joana D’arc Mendes, 54 anos, começa a falar sobre o assassinato de seu filho, Flávio Mendes Pontes, quando ele tinha 16 anos, em 2004. Segundo seu relato, dois policiais militares atiraram no rapaz, na frente dela, em Itaguaí. Mas só foram presos quando participaram da chacina da Baixada, um ano depois.

O nome de heroína contrasta com o rosto cansado, com cada vez menos forças para combater a violência policial. “Penso se devo continuar. O caso da Marielle também mexeu muito comigo por ela estar nos ajudando na luta. Todos os dias morrem jovens. Eu não aguento, não suporto tanta dor. Ninguém toma uma iniciativa, não acontece nada”, diz.

O que a gente observa, desde a década de 70, é que grupos de extermínio e esquadrões da morte estão articulados em diferentes níveis do poder público: judiciário, executivo e legislativo

Fernando Sousa
Co-diretor de Nossos Mortos Têm Voz

O filme em que Silvana, Luciene e Joana aparecem foi feito em parceria com o Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu, o Fórum Grita Baixada e a Misereor, e traz também o relato de outras duas mulheres que viram suas vidas mudarem de rumo. Elas hoje tentam seguir sem deixar de buscar justiça para os parentes. Todos os anos, em março, no aniversário da Chacina da Baixada, acontece uma caminhada pedindo paz e justiça.

O filme começou a ser rodado durante o protesto, em 2017. “Em todos os casos, o que chama a atenção é a crueldade com que o Estado se coloca na Baixada Fluminense. O que a gente observa, desde a década de 70, é que grupos de extermínio e esquadrões da morte estão articulados em diferentes níveis do poder público: judiciário, executivo e legislativo”, diz Fernando Sousa, que divide a direção do filme com Gabriel Barbosa.

A estreia de Nossos Mortos Têm Voz aconteceu em março, no Cine Odeon, no Rio. Na ocasião, cada poltrona da sala recebeu o nome de uma vítima da violência do Estado, e os familiares foram chamados ao palco. Está prevista uma exibição em maio, na Baixada Fluminense. Depois, a proposta é que o filme rode pelo Brasil e por outros países, por meio de festivais e de parcerias com entidades de defesa dos direitos humanos.

“O documentário expressa justamente o que a gente quer fazer, dar voz a quem não tem voz, porque na Baixada Fluminense tudo fica por debaixo dos panos. As violações são feitas e ninguém faz nada. E é um trabalho cada vez mais difícil, porque as pessoas têm medo”, desabafa Luciene.

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