Por Wilson Roberto Meira Ferreira, Cinegnose –
Metalinguagens e efeitos visuais tautológicos dominaram a cobertura do programa Fantástico do último domingo sobre as Olimpíadas Rio 2016, com a mesma estética apoteótica das transmissões do Carnaval, dando o tom geral da cobertura da emissora. Mais do que mau gosto, é a evidência do “tautismo” (autismo + tautologia) crônico da Globo nos anos recentes. Para uma emissora que se fechou em si mesma como reação à crise de audiência e a concorrência das mídias de convergência, não existe mais mundo externo: as Olimpíadas só acontecem no Rio para que a Globo possa transmiti-la. E o auge do tautismo é quando jornalistas começam a entrevistar outros jornalistas da própria emissora. Para a Globo, a cobertura jornalística em si é mais importante do que o próprio evento e os relatos das emoções de seus apresentadores é mais dramático do que as dos próprios atletas.
Em pouco mais de uma hora da cobertura dos preparativos para o início das Olimpíadas no Rio no programa Fantástico, um terço do tempo (algo em torno de 20 minutos) foi dedicado a um exercício de metalinguagem: a Globo falando dela mesma sobre como vai cobrir o evento. O ápice da contínua auto-referência foi quando um jornalista entrevistou outro jornalista da própria emissora.
O restante do tempo, a emissora nada mais fez do que transformar o evento em uma espécie de suíte da pauta do seu telejornalismo da últimas semanas: a suposta ameaça de terroristas brasileiros de uma “célula amadora” (segundo o ministro da Justiça Alexandre de Moraes) e o escândalo do esquema de dopagem generalizada de atletas russos.
A novidade foi a mudança de humor e atmosfera da cobertura jornalística: uma pauta pra lá de positiva, bem diferente da Copa do Mundo de 2014 com denúncias de arenas superfaturadas, previsões sombrias sobre um possível caos nas telecomunicações e obras de infraestrutura que jamais seriam inauguradas.
O que é “tautismo”?Dessa vez, haverá legado olímpico (a infraestrutura de transporte do Rio de repente passou a funcionar), bem diferente da Copa onde tudo era reportado como um grande gastança de dinheiro público. Agora o pensamento é positivo e patriótico. Afinal, a torre de marfim do estúdio da Globo está no Parque Olímpico. Por isso, repetir o baixo astral da Copa não vem ao caso.
Tudo isso evidencia que a TV Globo fará uma cobertura tautista (autismo + tautologia) do evento olímpico, confirmando a tendência dos últimos anos que coincide com a sua queda vertical de audiência. Autista porque a linguagem começa a misturar elementos de ficção e não-ficção onde a cobertura torna-se mais importante do que o próprio evento; e tautológico pela lógica auto-referencial onde as fronteiras entre o “dentro” e “fora” começam a desaparecer.
Tautismo é um neologismo criado pelo pesquisador francês Lucien Sfez para designar o que ele chama de “comunicação confusional”: traço dominante contemporâneo onde o processo comunicacional teria se tornado um diálogo sem personagem. Só leva em conta a si mesmo, isto é, a comunicação como o seu próprio objeto.
Seguindo o paradigma dos estudos sobre sistemas dos pesquisadores Varela e Luhumann, para Sfez o tautismo é o resultado da hipertrofia de sistemas que de tão grandes e complexos começam a se auto-organizar e fechar em si mesmos – “auto-organização” e “fechamento”, como chamado nos estudos sistêmicos – sobre isso leia SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. São Paulo: Loyola, 2000.
Por “fechamento” entende-se o momento no qual quando o sistema troca informações com o mundo externo, qualquer dado exterior é traduzido por uma descrição que o sistema faz de si mesmo.
Da metalinguagem ao fechamento operacional
A TV Globo sempre abusou das metalinguagens como forma de demonstração do seu poder tecnológico e financeiro em relações às concorrentes. O estardalhaço com que falava da câmera nos trilhos sobre os boxes do autódromo de Interlagos ou da sua câmera exclusiva nas transmissões das copas do mundo sempre foi para a emissora uma prova inconteste do seu monopólio das comunicações no País.
Embora ainda a TV Globo mantenha o seu poder econômico graças a sua estratégia de BV (Bônus por Volume) para garantir a maior parte do bolo das verbas publicitárias, seu poder simbólico vem decrescendo com a constante queda de audiência e a concorrência das tecnologias de convergência e Internet.
Como um sistema de comunicação que cresceu, tornou-se hegemônico e complexo com seus interesses e ingerências na política brasileira, a Rede Globo começa a expor as características de todo sistema: buscar a todo custo o equilíbrio, prevenindo que qualquer informação que venha do ambiente exterior possa desestabilizá-lo. Isso se chamaria “fechamento operacional”.
Por isso, diante das novas condições políticas (parcialmente resolvidas com o afastamento da presidenta Dilma e o sucesso do afastamento do PT do poder) e tecnológicas (ainda não resolvida com o ameaça das redes sociais, blogs e dispositivos móveis) a Globo radicalizaria esse processo de fechamento para tentar expurgar qualquer evidência de decadência.
O destaque dado à “célula amadora” brasileira supostamente cooptada pela Internet como ameaça terrorista real torna-se uma tradução do mundo através da projeção de uma descrição que a Globo faz de si mesma: transformou-se numa pauta obrigatória das Olimpíadas, para provar como a Internet e novas tecnologias seriam, em si mesmas , criminógenas – vício, pedofilia, violência de torcidas de futebol, golpes cibernéticos etc.
Mas o momento culminante desse autismo e recorrente auto-referência é quando jornalistas entrevistam outros jornalistas do próprio grupo – o repórter José Burnier “entrevistou” o locutor Galvão Bueno sobre suas impressões de décadas cobrindo olimpíadas.
Jornalistas entrevistando outros jornalistas sempre foi um fato corriqueiro em coberturas extensivas como Copa do Mundo e Olimpíadas: sem notícias novas, inventam-se pautas para encher buracos da programação.
Mas nos tempos recentes da Globo isso vai além: transforma-se em tautismo. Por exemplo, no programa Estúdio I do canal Globo News tornou-se corriqueiro a apresentadora Maria Beltrão e seus comentaristas entrevistarem repórteres do jornal O Globo – nos últimos dias abordando os temas da violência no Rio e a ameaça terrorista no Brasil. O que contradiz qualquer parâmetro de uma suposta objetividade que o jornalismo sempre prezou.
A natureza tautológica, auto-referencial e de circularidade fica exposta: o repórter apenas confirma a pauta que ele já conhece de antemão da redação do programa que o entrevista.
Efeitos visuais tautistas
As imagens aéreas do Globocop (o helicóptero da emissora) do Parque Olímpico, mostravam o estúdio da Globo como edifício central do complexo esportivo. O tom apoteótico dos apresentadores produziu o mesmo efeito das coberturas do desfile das escolas de samba no Sambódromo: assim como o Carnaval, também as Olimpíadas só acontecem para que a Globo possa transmitir.
Mas esse efeito apoteótico como um samba enredo do Carnaval não fica apenas por aí. Os efeito visuais em chroma acrescentam mais um elemento tautológico no tautismo da linguagem global. A função dos antigos “selos” (composição de elemento gráfico que identifica editorias ou temas da pauta do telejornal) na linguagem telejornalística, que sempre se posicionavam atrás do apresentador, agora pulam para frente, no meio do estúdio em efeito 3D.
Se o tema é vôlei de praia, aparece areia no estúdio com um jogador preparando uma cortada na rede. Apresentadores e convidados se esforçam em tornar orgânico o efeito, mas sem sucesso. O efeito não é informativo, mas de mera repetição ou saturação semântica semelhante aos efeitos neobarrocos das coberturas de carnaval.
O mesmo ainda acontece com as chamadas “mesas táticas” de futebol (agora evoluindo para “piscinas táticas” e “quadras táticas”) onde do didatismo também pula para a redundância daquilo que o comentarista já havia dito durante a partida.
A função geral não é mais informativa – sistemas tautistas se tornam cegos ao mundo externo; aliás, o lado de fora só existe para confirmar o que já está dentro.
A função é tautológica e, mais além, ideológica. Desde os tempos da estética Hans Donner, o futurismo das bancadas de telejornais da Globo que pareciam naves espaciais procurava criar uma atmosfera de tecnologia, neutralidade e transparência – no senso comum, tudo que soa “científico” e “tecnológico” é neutro e confiável.
Essa continua sendo a função ideológica tanto do estúdio de vidro da Copa do Mundo como a atual torre de marfim no Parque Olímpico, repleta de efeitos de chroma e holografia: criar a aparência de objetividade jornalística, mesmo que seja através de uma estética tautológica e apoteótica como um samba-enredo no Sambódromo.