Aparelha Luzia, o quilombo urbano de São Paulo

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Por Beatriz Sanz em El Páis – 

Espaço cultural fomenta debates políticos voltados para a população negra

Aparelha Luzia
Erica Malunguinho no Aparelha Luzia. JULIANA FARINHA

Uma pequena caminhada pela Rua Apa, em São Paulo, a mesma que abriga um famoso castelo que segundo a lenda urbana é mal assombrado, te deixa na porta do Aparelha Luzia. Caso esse passeio seja feito durante o dia, é muito provável que alguém passe despercebido pelo galpão que ocupa o número 78 dessa rua na região central da cidade. Mas se ao contrário, a visita se der no período da noite, as possibilidades de tropeçar numa roda de samba, numa mostra de filmes que não estão no circuito ou numa efervescência de pessoas conversando animadamente são grandes. Por fim, se o visitante não tiver sido antecipadamente prevenido, pode se surpreender ao se dar conta de que o público ocupante daquele espaço central é majoritariamente negro. Aparelha Luzia foi pensado para ser um quilombo urbano.

O espaço que funciona de quinta-feira a domingo oficialmente, mas de maneira informal também abre terça e quarta-feira, é um centro cultural e político. Inaugurado em abril de 2016, o nome incomum do local remete a um passado mais distante. Aparelhos eram apartamentos ou casas onde ativistas que resistiam à Ditadura Militar se encontravam clandestinamente, faziam reuniões ou se refugiavam. Luzia, por sua vez, é o nome do fóssil mais antigo já encontrado na América, datado em cerca de 13.000 anos. Descoberta em Minas Gerais, ela tinha traços e fenótipos negros muito antes do início do tráfico de escravos no século XVI.

Nos primórdios a idealizadora e gestora do espaço Erica Malunguinho ia em eventos e atividades culturais que aconteciam em outros espaços ou falava até mesmo com as pessoas que encontrava pelas ruas e as convidava para conhecer o Aparelha Luzia.

O boca a boca funcionou e o espaço agora recebe cerca de 500 visitantes por semana, regularmente. Mas existem situações extraordinárias, como a visita de Carl Hart, neurocientista e professor de psicologia e psiquiatria da Universidade Columbia, um dos nomes mais relevantes nas discussões sobre uso e dependência de drogas. Em setembro, as pessoas se amontoavam para ouvir o pesquisador. “Aparelha já é rota internacional. Dia desses havia caravanas do Rio de Janeiro, Pará, Mato Grosso, Senegal, Angola, Cabo Verde, Nova York. Parecia a torre de babel refundada”, conta Erica.

A palestra de Hart não foi mero acaso. Do outro lado da rua e nos arredores moradores de rua e usuários de crackcriaram uma espécie de acampamento. A convivência, ao contrário do que se poderia imaginar em um primeiro momento, não acarreta nenhum problema para o estabelecimento ou os frequentadores. “Uma moça em situação de rua vem sempre quando tem samba. Ela adora roda de samba. Nós temos uma relação de convivência e de trocas que cada vez mais se aperfeiçoa. Estamos aprendendo e intervindo na medida da aceitação”, explica.

As histórias da criadora e sua criatura são tão intrínsecas que fica difícil separar. Erica é formada em pedagogia, é mestre em estética e história da arte, e já deu aulas. Mas sua trajetória sempre foi marcada pela arte. As ruas de Recife, cidade onde nasceu, eram marcadas por intervenções que ela realizava ao lado de amigos ainda na adolescência. Veio para São Paulo aos 19 anos e se estabeleceu quase que de imediato no centro, região em que vive até hoje. Durante o período em que deu aula na rede pública municipal percorreu a cidade toda. Ela é uma mulher trans, negra e nordestina, mas este é um assunto que ela não costuma falar com a imprensa. “Tem muitas histórias de dor e opressão que eu já enfrentei, porém eu não gosto de falar sobre isso. E não é por negar, mas é porque reforça estereótipos e é isso o que as pessoas querem ouvir para saciar essa sede que têm por uma narrativa de superação. E as nossas dores não podem ser palco para discursos meritocráticos, elas são a prova da exclusão e das mortes sistemáticas previstas neste modelo de civilização, o racismo não é uma teoria flutuante, ela é práxis, assim como o machismo.”

O espaço em si tem muito de Erica, mas não só dela. As paredes rosadas do galpão são uma galeria onde artistas negros podem expor seus quadros e fotografias. Do teto caem tapetes, fitas, redes. Na cozinha, a Chef Cícera Alves adianta o cardápio da noite enquanto a trilha sonora é feita ora por Maria Bethânia, ora por Gilberto Gil, ora por Xênia França, numa mistura de MPB clássica e contemporânea.

Detalhes de obras expostas.
Detalhes de obras expostas. JULIANA FARINHA

Erica, multifacetada que é — desenha, pinta, fotografa, performa, entre outros — também é inquieta. Ao mesmo tempo em que responde às perguntas da reportagem de EL PAÍS, recebe seus convidados, cumprimentando um a um. Quando pode, responde mensagens no celular, faz os arranjos finais para o evento da noite e ao fim é chamada para dar início aos trabalhos. Faz tudo isso mastigando algumas castanhas para enganar a fome. Na noite será exibido um filme sobre jovens negras feito pelo Instituto Criar.

Em seus sermões na abertura de eventos ela costuma falar sobre a ausência de pessoas negras na política em posições de poder. “A política é feita no cotidiano, mas ela chega em lugares institucionais. É importante que os pretos estejam em todos: executivo, legislativo e judiciário”, justifica Erica.

Sua habilidade de fazer tantas coisas ao mesmo tempo é também racional: ela fala de tudo. “Se me perguntarem sobre o que eu quero discutir, eu posso discutir sobre tudo”, afirma categórica. E essa é também uma das funções do Aparelha Luzia. Apesar da ampla programação de exposições, filmes, shows, há dias em que não se realiza nenhum evento e é possível apenas degustar o menu do dia ou beber uma cerveja e conversar. Para Erica, essa é a finalidade desse espaço de circulação de ideias negras. “A gente precisava de um lugar onde a gente pudesse simplesmente ser e escrever nossas narrativas, um lugar de encontro e de existência”, finaliza.

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