Por Ana Maria Gonçalves, Intercept Brasil –
A PALAVRA “MERITOCRACIA” surgiu em 1958 no título do romance distópico e satírico “The Rise of Meritocracy”, do sociólogo e político britânico Michael Young. Foi escrito para ser uma crítica ao sistema educacional adotado na Inglaterra nos anos do pós-guerra, que dividia e preparava de maneira diferente as crianças da elite e as do povo, destinando a elas futuros também bastante distintos.
O romance previa que, em 2034, haveria uma grande revolução fomentada pela desigualdade social advinda do elitismo educacional e, finalmente, a “meritocracia” elitista seria superada por sistemas que levassem em conta as condições sociais e culturais dos indivíduos.
Em 2001, Young escreveu um artigo dizendo-se bastante infeliz com o rumo que sua crítica havia tomado desde que a direita, ignorando o conteúdo do livro, havia se apropriado do termo e revestido-o com características positivas. Um dos grandes medos do sociólogo era de que a meritocracia se tornasse hereditária, como de fato se tornou, aprofundando e naturalizando as desigualdades sob a justificativa de que todos, caso se esforcem e se dediquem, podem alcançar o sucesso profissional.
Se houver oportunidade para se mostrar mérito e o mérito aparece – algumas vezes, surpreendendo o privilégio e desagradando os privilegiados.
Neste excelente artigo publicado na The Atlantic, sob o sugestivo título de “A meritocracia funciona? – Não se a sociedade e as universidades continuarem falhando em separar riqueza e mérito”, o escritor e editor Ross Douthat escreve:
“Nesta meritocracia hereditária, as crianças mais privilegiadas não apenas frequentarão escolas com outras crianças privilegiadas, mas também se casarão com outra/o privilegiada/o e se estabelecerão em uma área privilegiada – tudo o de melhor para garantir que seus filhos terão todas as vantagens culturais que tiveram ao crescer.”
Transportemos esta ideia de meritocracia da escola para outras áreas, como a literatura, por exemplo, e podemos perceber a atuação dos mesmos mecanismos. Quando questionados sobre a falta de mulheres ou de negros nas listas de convidados para os principais eventos literários, curadores (geralmente, homens brancos – ou seja, os mais privilegiados), dizem que não levam em conta raça ou gênero, mas apenas a qualidade do trabalho – ou seja, o mérito.
Tanto em uma situação quanto em outra, tal meritocracia é uma grande falácia, por não se sustentar em um sistema que se baseie em oportunidades iguais de prova de mérito. Sem que a todos sejam dadas as mesmas condições, a mesma visibilidade e a mesma representatividade, como realmente saber se os melhores foram mesmos os escolhidos, e não apenas os mais privilegiados, os melhor relacionados, os mais midiatizados?
Abrindo espaço
A FLIP 2017 nos trouxe muito a pensar nesse sentido. Pela primeira vez em suas 15 edições, o número de mulheres convidadas se equiparou ao dos homens. Nestes quinze anos, mulheres compuseram apenas 1/4 do elenco de convidados principais, como nos mostra este artigo de Natália Mazotte, que também traz outras informações bastante interessantes. Também pela primeira vez, escritoras e escritores negras/os representaram 30% dos convidados, provavelmente atingindo um número que não deve ficar muito longe do que representaram em todos os outros anos juntos. Será que, com esta composição, foi a FLIP da falta de mérito?
Os números dizem que não. De acordo com levantamento da livraria oficial do evento, os livros mais vendidos foram:
1º – Na minha pele, de Lázaro Ramos
2º – A mulher dos pés descalços, de Scholastique Mukasonga
3º – Lima Barreto – Triste visionário, de Lilia Moritz Schwarcz
4º – Nossa Senhora do Nilo, de Scholastique Mukasonga
5º – Com o mar por meio, de Jorge Amado e José Saramago, organizado por Pílar Del Río e Paloma Amado
6º – Esse cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida
7º – Diário do hospício / Cemitério dos vivos, de Lima Barreto
8º – Para educar crianças feministas, de Chimamanda Adichie
9º – O vendido, de Paul Beatty
10º – Bíblia: Novo Testamento – Os quatro Evangelhos, traduzida por Frederico Lourenço.
É interessante notar que sete foram escritos por autores/as negros/as e um deles é a biografia do autor negro homenageado, Lima Barreto. Cinco foram escritos por mulheres, que também organizaram mais um deles.
O ponto aqui é: se houver oportunidade para se mostrar mérito, o mérito aparece – algumas vezes – surpreendendo o privilégio e desagradando os privilegiados.
Uma das principais reclamações foi a de que esta edição da FLIP não contava com nomes de peso ou grandes estrelas da literatura mundial. Na verdade essa é uma reclamação que pode ser interpretada através da insatisfação de algumas editoras, que disseram ter oferecido grandes nomes para a programação que, desta vez, não se deixou pautar pelas ofertas fáceis. A grande estrela, na verdade, foi a professora Diva Guimarães, cuja participação provavelmente teve muito mais impacto do que poderia ter uma declaração de qualquer outro escritor ou escritora que pudesse ter vindo para ocupar o lugar de nome de peso.
O que a curadoria do ano passado fez, ao ter uma lista de convidados formada inteiramente por escritores e escritoras brancos, foi também abrir mão de momentos como esse. O depoimento de dona Diva foi possível apenas porque, do palco, a presença de Lázaro Ramos, a repercussão do seu livro falando de questões raciais e o ambiente receptivo e seguro promovido por suas falas estimulou a fala e a presença dela. *A ideia de dona Diva era tomar a palavra para homenagear a mãe, mulher negra batalhadora e importante em sua formação, depois de ter ouvido, na noite anterior, a fala da escritora Scholastique Mukasonga, sobre o livro que escreveu em memória da mãe, morta no genocídio de Ruanda.* A curadoria corajosa e responsável de Josélia Aguiar conseguiu mudar não apenas a programação, mas sua recepção por parte do público. E é assim também que a literatura funciona: através de sua interação com quem a lê.
Estamos tirando-os daqueles lugares que sempre tiveram como garantidos, embora nem todos tenham precisado se esforçar para atingi-los ou continuar habitando-os.
A mudança se via pelas ruas, com um público que, sentindo-se representado e instigado pela presença de escritores e escritoras a quem vinham, através dos anos, dando visibilidade. Era quase unânime a percepção de todos de que havia uma energia diferente e mais pulsante do que nas edições anteriores. Via-se também manifestações contrariadas, embora contidas.
Assistindo a boa parte das mesas de um local reservado para convidados e patrocinadores, não havia como não perceber alguns muxoxos, olhares atravessados, sussurros de espanto ou discordância. Li também algumas avaliações bastante mal humoradas, que não por acaso foram escritas por homens brancos. Devem estar preocupados, porque estamos nos movimentando. Estamos tirando-os daquele lugar que sempre tiveram como garantidos, embora nem todos tenham precisado se esforçar para atingi-lo ou continuar habitando-o.
O efeito da mudança tem sido benéfico também em relação a outras feiras e festas literárias. Depois da FLIP, já recebi pelo menos três convites que vieram com uma proposta diferente, querendo também participar e promover uma discussão que, mesmo não acontecendo o tempo todo em Paraty, estava lá: nas caras, nos corpos, nas posturas, nas fricções.
Aguardo ansiosa outro evento que também foi fruto das ausências de Paraty 2016: o Mulherio das Letras, coordenado pela escritora Maria Valéria Resende. Estamos nos articulando e nos movimentando. Quem ficou parado até agora, que corra atrás.