Por David Diáz, publicado em El País –
“Doutor, doutor, a noite anterior dói em mim…”. Não sofra mais com os efeitos da ressaca
O despertador toca ou, na verdade, troveja. Malditas marteladas que lembram que hoje é preciso madrugar e você não se lembra de nada de ontem. O estômago quer se comunicar com você. Na noite passada você deve ter comido uma porcariada de quatro quilos de carne com batatas fritas que você viu no último episódio de Man V. Food. Sim, você sobreviveu. A cabeça parece atravessada pela Espada de vários pares de copos que você tomou na noite anterior, enquanto os olhos grudam como lêndeas que não comem há meses e veem tudo em câmera lenta. Você está de ressaca, é óbvio.
A ressaca é um fenômeno mais antigo do que atirar pedras na água e, apesar de que sempre há vozes exorcistas que se erguem carregadas de moralismo contra o consumo de álcool, o certo é que quase todo mundo já se excedeu em alguma ocasião com alguma bebida de elevado teor alcoólico. E o chato já não é ter bebido, mas buscar o remédio no dia seguinte, um elixir que te salve da autodecapitação e te devolva à normalidade. Enfim, chega de remédios da vovó e dos ataques de nervos diante do computador. Na Austrália encontraram a solução absoluta: uma clínica para tratar da ressaca.
I gotta hangover
Surry Hills, Sydney, 10 de dezembro de 2015. É inaugurada a clínica Hangover, o primeiro centro médico especializado no tratamento dos excessos com o álcool. Acabaram-se os dias de sofá, de silenciar o celular, do suco de tomate e das ingestões mastodônticas de porcarias. O que agora se quer promover é um tratamento médico para curar a pessoa em meia hora. Em sua página na Internet são propostos três tipos de remédios, segundo o orçamento do interessado (ou o dinheiro que tiver restado da noite anterior) e sempre dependendo da necessidade imperiosa de que o corpo em má situação não transforme o paciente em um assassino em série em potencial. .JumpStart, para os que precisam de um pequeno impulso energético e de estar prontos em meia hora. Energise se o que se precisa é de um choque elétrico vitamínico para cavalos e Resurrectionpara os que ficaram como farrapos de limpar ignição de veículos e o simples toque do celular eleva o som à enésima potência na escala Richter.
Não há muito mistério nos tratamentos. Na realidade, o que dão aos pacientes é uma grande quantidade de soros, vitaminas e analgésicos por via intravenosa para que o corpo deixe de sentir os efeitos e se recupere muito antes. As pessoas de ressaca podem marcar hora pela Internet e, se a experiência for positiva, podem conseguir descontos para colegas ou presentear-lhes tratamentos.
A polêmica está lançada
Não é de estranhar que semelhante bomba no âmbito da saúde pública tenha resultado em uma guerra contra os promotores de tal tratamento. Os órgãos de comunicação de meio mundo reagiram com furor, semeando uma discórdia espetacular. Uma ocasião perfeitamente aproveitada pelos detratores do álcool para demonizar os pecadores que caem nas garras do demônio da bebida. Na clínica, obviamente, tentaram defender-se com o argumento de que nesse lugar “não se promove o consumo de álcool” e as terapias empregadas estão perfeitamente de acordo com as normas e são adotadas como um benefício social.
Sinceramente, acredito que todo mundo perdeu a cabeça alguma vez. Atacamos as clínicas que tentam curar o tabagismo, mas não as demonizamos, e o fumo mata. Atacamos as clínicas de aborto porque nos consideramos com poder para determinar quem tem o direito e quem não tem de decidir. Atacamos as clínicas de cirurgia plástica porque temos que assumir o que a natureza nos deu, independentemente de nossa vontade. Atacamos a indústria pornográfica porque alguns até pensam que induz à prostituição, e não a dar de comer a famílias. Atacamos as clínicas especializadas em doenças de transmissão sexual porque, afinal, “o que fazem alguns indecentes por aí”. Atacamos a indústria da moda porque apresenta uma vitrina de mulheres magras demais quando são muito magras ou gordas demais quando são de tamanho grande. Atacamos constantemente porque pensamos que nossa moralidade está acima da liberdade de cada um. No geral, é só um direito fundamental, uma bobagem.
E não inventaram nada de novo. Há tempos que clínicas semelhantes funcionam em Las Vegas, Atlanta, Nova Orleans e Chicago. Por que agora tanto escândalo? Talvez possamos seguir o mesmo caminho na Espanha, e de passagem inventamos uma clínica contra o consumo da prostituição ou especializada em curar quem maltrata. No que eu não posso estar mais de acordo é no consumo responsável, na vontade de cada um e na liberdade que temos para fazer o que nos der na telha. Sim, que aquele que se exceda arque com as consequências, embora o tratamento custe 100 euros (428 reais). E se, em vez de em uma maca, você tiver de ser levado na bolsa de um canguru, pouco importa também. Você decide.