Cantar e lutar pela senhora liberdade, tão vilipendiada nos últimos tempos, assim como foi na ditadura militar, é o que nos resta. Liberdade de expressão, de manifestação, de ir e vir… Tudo o que tempos de arbítrio é tirado do povo. Nesta nova edição do “Então, foi Assim?”, do produtor multimídia, pesquisador, radialista, escritor e divulgador da música brasileira Ruy Godinho, vamos conhecer como foi composta “Senhora Liberdade”, pelos mestres Wilson Moreira e Nei Lopes. A música foi um dos “hinos” consagrados na luta pelas eleições diretas para presidente, no final da ditadura militar, em 1984.
SENHORA LIBERDADE
Abre as asas sobre mim/oh! Senhora liberdade… Esse era o canto que se ouvia, ecoando pelas ruas do Centro Histórico do Rio de Janeiro, entoado por milhares de vozes, vindo da Candelária, onde se realizava um dos principais comícios pelas Diretas Já, em 1984. Transformado em poderoso vórtice de energia, o canto exprimia o desejo de libertação do país, após 21 anos vivendo os horrores da ditadura militar.
Violenta emoção, pois/amar foi meu delito… A violenta emoção que se instalava no coração de cada um dos manifestantes atingia em cheio uma pessoa em especial, Wilson Moreira[1] – autor da melodia deste samba transformado em hino. Chorando, sentou-se no meio fio – não aguentou chegar às proximidades do palco.
“Eu ia pela Rio Branco e encontrei o Nelsinho Rodrigues, filho do Nelson Rodrigues. Aí ele falou:
‘– Moreira, você está ouvindo’?
‘– Tô! Não quero nem ir lá’.
Eu não aguentei chegar à Candelária. Estava aquele rumor, todo mundo cantando. Não deu pra ir lá, não. Fiquei sentado no meio fio, emocionado, muito emocionado. Depois eu fui embora pra casa. Esta música já me deu muitas alegrias”, revela Moreira[2].
Senhora liberdade é uma entre tantas músicas criadas na feliz parceria de Wilson Moreira com Nei Lopes em que estão também Candongueiro e Coisa da antiga, registradas por Clara Nunes, Goiabada cascão, sucesso nas vozes de Beth Carvalho e Dudu Nobre, e Gostoso veneno, que se tornou carro-chefe da cantora Alcione.
Em sua trajetória como compositor, Moreira se iniciou solitariamente. Depois, foi parceiro de Candeia. Com a repercussão do LP Olé do Partido Alto (Tapecar, 1974), despertou o interesse de Nei Lopes, que desejou ser seu parceiro. Quem fez a ponte entre eles foi o cantor e compositor Délcio Carvalho.
“O Nei era publicitário, trabalhava com jingles. O Délcio me convidou e fomos encontrá-lo. Ele falou pro Nei: ‘Vou te apresentar um cara que põe música até em bula de remédio’. Pedi pro Délcio não exagerar. O Nei ficou muito alegre.
‘– Wilson Moreira, poxa vida! E aí, tudo bem? Estou com umas letras e quero te mostrar. Como é que vai ser: ‘Tu vais a minha casa’?’
Aí eu fui pra lá e ele me deu um bocado de letras. Primeiro foi Leonel ou Leonor, que eu botei música e Roberto Ribeiro gravou de cara. Em seguida, vários artistas foram pedindo músicas nossas”, contabiliza Moreira.
Nei Lopes também valoriza muito esse encontro e relembra os detalhes da relação.
“Wilson Moreira é a parceria mais bem-sucedida que eu tenho. A gente teve aquele boom, mas nunca foi de conviver. A gente se encontrava de vez em quando. A presença nunca foi fundamental. A gente fez muita coisa por telefone”, relata Nei, que aproveita para relembrar fatos pitorescos da parceria.
“Na época, o Wilson trabalhava no sistema penitenciário. Quando ele tinha folga, estava mais ou menos livre, ele me telefonava:
‘– Olha, eu estou com um negócio aqui, escuta aí’.
Eu às vezes até gravava. Um dia ele estava passando uma melodia pra mim, por telefone, e, de repente, ouvi um barulho e ele disse:
‘– Espera aí! Eu ligo depois’.
Mais tarde, ele me contou que, no refeitório do presídio, um preso jogou uma bandeja na cabeça do outro e interrompeu nossa criação”, relembra Nei Lopes.
Inquirido sobre o processo criativo, Wilson Moreira afirma que suas inspirações vêm geralmente pela manhã.
“Quando eu viajo, então, é uma coisa boa. Eu fiz uma música que está no CD Okolofé [2000], que todo mundo ficou surpreso. Chama-se Canção de carreiro. Naquela época eu dirigia o meu carro, a coordenação [motora] não estava prejudicada como está hoje. Eu estava dirigindo, viajando com minha mãe e meu irmão. Na beira da estrada, eu disse: ‘Esperem um minutinho que eu vou parar aqui. Peguei um papel e comecei a escrever: O som das rodas daquela carroça… E acabei de escrever ali mesmo”, recorda.
Nei Lopes[3] contou em detalhes seu processo criativo no capítulo dedicado à Tia Eulália na Xiba[4] (com Cláudio Jorge). Contudo, reforça que a atividade só é prazerosa quando chega ao fim[5].
“Há um músico brasileiro, que é quase erudito, é preciosista, muito detalhista, é minimalista, que se chama Guinga. Ele já me deu quatro melodias para botar letra e eu botei. Suei pra botar, porque não é fácil. Mas ficou legal. Tem até uma delas – Parsifal –, meio engraçada, que é a história de um militar reformado, o major Parsifal. Na melodia tinha um final que se repetia. Como eu achava que era uma coda, não fiz letra para aquele pedaço. Aí o Guinga disse: ‘Não, não é uma coda, é uma continuação’. Aí eu tive de pegar a letra de volta e dar um novo final à história que eu tinha criado. É um trabalho intelectual muito exaustivo, mas é prazeroso quando você consegue realizar.”
Moreira reconhece o valor do parceiro. “O Nei Lopes é muito bom letrista. Ele manda a letra pra mim e eu faço as melodias. Minha parceria com o Nei é uma grande sacada.”
Concordo plenamente e ilustro a performance dessa soma de talentos com a história de Violenta emoção, primeiro título do samba que todos conhecemos como Senhora liberdade. Primeiro, a versão de Moreira.
“Um dia, fomos ao aniversário do Sérgio Cabral, o pai. Ele iria fazer aquelas feijoadas de apartamento. Estavam vários sambistas lá: o Padeirinho, o Luiz Carlos da Vila, a Dona Ivone Lara, o João Bosco, a Velha Guarda da Mangueira, a Velha Guarda da Portela… Tinha uma mesa de centro em que Martinho da Vila comandava a roda. Aí cada um cantou os seus sambas. Quando chegou a minha vez de cantar – eu e o Nei Lopes –, eu falei assim:
‘– Nei, vamos cantar aquele samba que a gente está finalizando, Violenta emoção’?
‘– Vamos’!
Quando a gente estava cantando, chegou o João de Aquino com a Zezé Motta. Ele ia produzir um disco dela. Ela chegou com aquele gravador antigo, parecia um tijolo. E falou:
‘– Gente, vou botar o meu gravador na mesa e vou gravar todas as músicas que vocês estão cantando, porque eu estou pra gravar um disco’!
Todos concordaram. Aí nós começamos a cantar: Abra as asas sobre mim/oh! Senhora liberdade/fui condenado/sem merecimento/por um sentimento/por uma paixão/violenta emoção, pois/amar foi meu delito…”
Wilson canta até o fim a letra recheada de termos jurídicos, que Nei Lopes explica muito bem a razão.
“O Wilson trabalhava no sistema penitenciário. Ele é aposentado. E eu sempre soube, por causa da minha convivência no meio, que existe um estilo de samba que os sentenciados faziam, lamentosos, falando do porquê de eles estarem ali aprisionados. Não deve existir mais. E eu conversando com o Wilson, falei: ‘Você conhece o samba que o pessoal canta’? E expliquei o que era. Ele respondeu:
‘– Ah! Sim, conheço. Tem uns sambas muito bonitos’.
‘– Vamos fazer um samba nesse estilo’?
‘– Vamos’!
Ele trouxe uma melodia pra mim, que começava inclusive com o que é hoje a segunda parte. [Canta]: Não vou passar por inocente…
Aí eu falei:
‘– Não, Wilson, acho que não está legal. O que você fez como primeira parte fica melhor como segunda’ – porque crescia. Aí trocamos e colocamos: Abre as asas sobre nós/oh! Senhora liberdade… Eu fiz a letra em cima de alguns termos jurídicos, da minha experiência de profissional de direito: Violenta emoção, que é um termo do direito penal; amar foi meu delito… Engraçado é que, depois desse samba, eu fiz vários outros usando essa linguagem jurídica, da advocacia. Então, tem essa história”, resume Nei Lopes, reforçando em seguida a ideia de que a obra, depois de lançada, pertence ao povo que a consagra.
“Como foi lançado em 1979, muita gente pensa que esse samba foi feito no bojo do movimento pela Anistia. Tem gente que jura que foi. O povo quer assim, que assim seja. Senhora liberdade foi cantada até no dia sete de setembro, em solenidade do Palácio da Alvorada. Eu estava em casa, na época do Fernando Henrique, e assisti à Olivia Byington cantando na solenidade. Tá bom, que seja assim”, conforma-se Nei Lopes em respeito à vontade do povo.
No dia da feijoada, Zezé Motta gravou todos os sambas que foram cantados. Gostou de Violenta emoção e… Quem conta é Wilson Moreira: “Eu trabalhava no presídio, lá em Bangu. Uns quinze ou vinte dias depois, o João de Aquino ligou pra mim e falou:
‘– Moreira, aquela música que você botou na fita para a Zezé Motta, Violenta emoção, pode ter outro título? Por que não Senhora liberdade’?
‘– Depende. Vou conversar com o Nei’.
Liguei pro Nei e falei:
‘– Oh! Nei! A Zezé Motta gravou nossa música na casa do Sérgio Cabral e agora quer registrar em disco. E o João de Aquino perguntou se a gente poderia mudar o título para Senhora liberdade.
‘– Já tá’! – respondeu o Nei.
Aí um dia eu fui ao estúdio assistir às gravações da Zezé Motta. Ela veio correndo, me deu um abraço e profetizou:
‘– Nego, nós vamos fazer sucesso com esta música’!
Não deu outra. Essa música, até hoje, se eu não cantar nos meus shows, o pessoal cobra”, festeja Wilson Moreira.
Zezé Motta foi a primeira a registrar Senhora liberdade, no LP Negritude (Atlantic/WEA, 1979). Em seguida, os autores a gravaram no LP A Arte Negra de Wilson Moreira e Nei Lopes (EMI/Odeon, 1980). Há a versão instrumental do grupo Choro na Feira, no CD Na Cadência do Samba (Independente, 2000); Zé Renato a gravou no CD De Letra & Música – Nei Lopes (Velas, 2000); está presente também no CD Jorge Vercillo – Ao Vivo – Marcos Valle, Leila Pinheiro e Jorge Vercillo (Emi/Brasil, 2006), entre outros registros.
Hoje em dia até a ciência se rendeu aos efeitos terapêuticos da música. E o próprio criador, certa feita, foi beneficiado por sua criatura.
“A Angela [Nenzy][6] arranjou um jeito de lançarmos o CD Okolofé [Rob Digital/ 2000] no Teatro Rival. Na ocasião [1997], eu estava convalescente de um derrame. Esse braço aqui não movimenta [aponta para o braço esquerdo]. Aí quando eu cantei Senhora liberdade, o povo todo cantou comigo no Teatro Rival: Abre as asas sobre mim/oh! Senhora liberdade… A emoção foi tão grande que meu braço foi levantando, levantando… Eu fiquei igual ao Cristo Redentor, com os dois braços abertos. Teve até uma matéria de um jornal referindo-se ao fato.
Nesse dia, ganhei uma longa salva de palmas. Quando eu desci do palco não podia nem parar. Todo mundo queria falar comigo, tirar fotos. Uma coisa de louco. Foi muito gratificante”, revela Wilson Moreira com brilho nos olhos.
Senhora liberdade
(Wilson Moreira/Nei Lopes)
Abre as asas sobre mim
Oh! Senhora liberdade
Eu fui condenado
Sem merecimento
Por um sentimento
Por uma paixão
Violenta emoção, pois
Amar foi meu delito
Mas foi um sonho tão bonito
Hoje estou no fim
Senhora liberdade
Abre as asas sobre mim
Não vou passar por inocente
Mas já sofri terrivelmente
Por caridade, oh! liberdade
Abre as asas sobre mim
[1] Wilson Moreira Serra 12/12/1936 Rio de Janeiro/RJ.
[2] Entrevista concedida ao autor em 23/2/2015, no Rio de Janeiro/RJ.
[3] Nei Brás Lopes 9/5/1942 Rio de Janeiro/RJ.
[4] História presente em outro capítulo deste Volume.
[5] Entrevista concedida ao autor em 14/11/2011, em Brasília/DF.
[6] Esposa de Wilson Moreira.
Foto: Luiz Clementino
livros disponíveis no site: www.entaofoiassim.com.br