E não é que o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, se transformou em cronista de romance canino? Só mesmo o talento criativo do nosso cronista para arrumar uma namoradinha para o nosso (do editor Washington e Carmola) cãopanheiro Açaí.
Açaí, que para o nosso amigo Julio, que partiu recentemente, era o cachorro mais feliz do mundo. Mas isso ele falava também sobre o Piloto…
Bom, com esta fábula Cícerocesariana, me veio à cabeça uma quadrinha paródia: “Um Açaí endiabrado, que vivia só latindo, por causa de uma tal Gigi acabou ganindo, acabou ganindo”.
“O senhor W e a senhora C já tinham notado que seu adorável cão, o Açaí, estava um tanto diferente. Como assim? Bem, vamos aos fatos: durante os passeios, Açaí começou a rondar uma certa casa de portão de madeira pintado a tinta óleo na cor branca. O senhor W, com seu faro de jornalista, foi atrás dos fatos e descobriu que naquela casa estava hospedada para temporada uma família com uma Cocker Spaniel que atendia pelo nome de Gigi. Pronto? Não, é aí que a aventura começa.
Açaí estava em suma enamorado. E como tal, naquele desespero típico, só faltava a ele por a coleira em si mesmo e ir em busca de seu amor, de seu bem maior, de si mesmo. O senhor W, precavidamente, lhe dizia: “Vai manso, meu amigo, vai manso”, que a gente ajuda.
O Açaí, a ouvir as palavras do senhor W, ora se escondia envergonhado debaixo do tapete feito das folhas de amendoeira, ora dava voltas em torno de si mesmo. Imaginem: se o amor mexe com o humor das pessoas, o que dirá com o humor dos animais. Valei-me, meu são Roque!
Dava dó ver o velho Açaí com aquela cara de Pierrot apaixonado olhando a lua refletida ali nos fundos do quintal. E o que dizer daquele cheirinho de jasmim? Para alguns, inebriante; para outros, de coração de ferro, enjoativo. Fatos e flatos é questão de olfato.
Gigi, por sua vez, também já não era mais a mesma, era só um coração aflito. A pobrezinha ia até o portão e voltava macambúzia, sofrida. Ai, e se? E se ele não passasse mais pelo portão? Os desavisados passavam pela casa e ela nem lhes dava susto com seus latidos. Que coisa, que coisa.
Houve um dia em que eles finalmente se encontraram: ali na praia da Moreninha, à tardinha. Açaí era todo alegria e garbo, peito estufado, fazendo porte de cão de caça. Gigi estava elegantérrima com o chapéu que lhe arrumaram. Um descuido dos donos e lá se puseram os dois a correr por aquela faixa de areia como se não houvesse amanhã. Se houve outras ocorrências, foi sem o consentimento e conhecimento dos donos.
Infelizmente, o casal de pombinhos não teve tempo de cair na rotina – sabe como é que é, romance sem ponto final tende a se tornar maior do que fora. A temporada foi curta. Gigi voltou à terra firme numa barca da noite de domingo.
Na barca, a família, excitadíssima, gostou do passeio, estava pensado em frequentar mais a ilha etc e tal. Que coisa, tão perto do centro e aquele sossego de cidade do interior. E aquele cheirinho daquela flor qual é? O menino voltava já sabendo andar de bicicleta sem rodinha – o joelho ralado era uma marca do esforço para conseguir o que se queria. A menina já tinha se esquecido da bronca que levou por passar protetor importado na boneca. Que bronca, não houve bronca nenhuma.
Não era impressão de ninguém, era à vera: Gigi parecia ter recobrado certa vivacidade. Os dias ali fizeram bem também a ela, que agora dormia tranquila na caixa. Parece que sonhava, pois que de quando em quando mexia a patinha como se estivesse a enterrar alguma coisa.
Agora era Açaí que ficaria macambúzio, pelo menos por algum tempo. Houve algumas vezes em que, com um gesto de rebeldia, ele se soltou da coleira e se mandou até à Praça das Barcas. Para fazer o quê ninguém sabe.
Mas o tempo cura as feridas, as nossas e a dos nossos animais de estimação. Cura ou é feito uma eterna pulga a viver de sugar o nosso sangue bem debaixo do nosso sovaco? Seja como for, Açaí aos poucos amansou, e foi se tornando de novo o melhor do amigo do homem, como sempre foi, o cãopanheiro.
É certo que, de quando em quando, ele passava em frente à casa do portão de madeira pintado a tinta a óleo da cor branca e, como quem não quisesse nada, punha o focinho por debaixo. Vai que, né? Aqui não tem desavença de família como tem a história dos Montéquios e dos Capuletos. Aqui o dono pode ajudar.
É, meu amigo, amor é assim mesmo. Têm dias que a gente até esquece, e vai levando; mas aí vem para botar tudo a perder o danado do cheirinho de jasmin, que para alguns é inebriante, para outros, de coração de ferro, enjoativo.
Quem sabe um dia você não topa com ela outra vez, em outras circunstâncias, para, como dizer?, desenterrar uns ossinhos? Porque nós sabemos: nunca houve uma Cocker Spaniel como a Gigi, ainda mais de chapéu. A praia da Moreninha sabe esperar.”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.