Mais um belo texto, fruto da amizade canina, da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nesta caminhada, o fiel amigo César fala do Açaí, o feliz (acho eu) cão que mora com este editor, Washington, e com a realmente feliz pelas companhias (do cachorro e acho eu, de mim), Carmola.
Mas, como veremos, César não passeia só com Açaí. Vejam só:
Esta era para ser a história de Açaí, o cão cujos olhos úmidos nos fazem lembrar do poema de João Cabral de Melo Neto sobre o rio Capibaribe. Açaí é um cão preto, e seu nome de batismo se refere muito provavelmente, por similitude, à cor dessa fruta que tanto sucesso faz entre as gentes do Rio de Janeiro, a despeito de (ou por causa de, vá saber) seu gosto de terra.
“Açaí é o cão de guarda de Washington e Carmola, casal querido que atualmente habita uma formosa casa em Paquetá. Eu nunca tive cachorro. Tivemos biquinhos de lacre e periquitos amarelos, presos em terríveis gaiolas. Certa feita, meu irmão, em um arroubo, cometeu um gesto libertário: abriu a portinhola da gaiola e lhes concedeu a liberdade. Foi um gesto bonito o do meu irmão, que ainda hoje me diz muito sobre como ele pensa o mundo.
À época a alforria passarinheira morávamos todos em um prédio de apartamentos no Engenho Novo, Zona Norte do município do Rio de Janeiro.
Aqui na Beija-flor, de quando em quando me divirto a observar os passeios dos cães e seus donos. Há um senhor que passa por aqui com um cachorro enorme. Os dois se parecem tanto que gracejo a imaginar que ambos usam a mesma tintura de cabelo. Outras vezes, ouço donas de cachorro conversarem como se os animais fossem seus filhos pequenos.
Parece-me que a situação aponta, neste caso, para uma relação substitutiva. Os filhos se vão; mas o cuidado que se tem ao orientar os filhos continua presente na vida de quem fica. E os cachorros e suas donas parecem se entender, se desentender, a exemplo da relação entre pais e filhos.
Há também um Pet Shop praticamente na esquina de casa. É do lado do barbeiro que tosa, digo, corta minhas madeixas grisalhas e rebeldes, cheias de rodamoinhos. Não é raro de eu ver cachorros saírem da Pet Shop emperiquitados como quem vai para uma festa de casamento.
É raro eu pensar na felicidade deles, confesso. Passo por ali e mal os vejo nas gaiolinhas enquanto esperam a vez de tomarem um banho de loja.Nunca gostei de gente que maltrata animais. Não há justificativa para quem o faz. Ou pior, quem maltrata animais é capaz de maltratar gentes na mesmíssima proporção mais cedo ou mais tarde – é esse tipo de indiferença que eu temo.
Enfim, desculpo aqueles que matam um animal para comer, o que não é caso, não é verdade? Entretanto, não tenho condições de perdoar aqueles que descontam suas frustrações em animais, sejam de estimação ou não.
Se bem que fico enjoado quando vejo como são abatidos (isto é, mortos) os animais que nos servem de alimento. Vejo um boi, por exemplo, um animal daquele porte, e confesso que não teria coragem de matá-lo nem mesmo para comer. O mesmo pode ser dito em relação aos suínos.
É mais do que dó, não tenho é coragem. Não conseguiria pegar uma galinha pelos pés, colocá-la em uma guilhotina, depois na água quente, como ainda cheguei a ver quando morei na Praça Seca (sub-bairro de Jacarepaguá, bairro gigante da Zona Oeste do Rio de Janeiro) em criança.
Enfim, se minha dieta dependesse dos meus esforços de caçador, eu iria acabar subnutrido, com deficiência de proteínas, um vegano a contragosto. Uma coisa é chegar no açougue e comprar um quilo de contrafilé, dois quilos de peito de frango. Outra coisa é matar, deixar sangrar, retirar o couro, cortar a carne de um animal.
Arrisco um entendimento, caio na arapuca: é que eu, a exemplo dos passarinhos libertos por meu irmão, historieta que contei parágrafos acima, nada aprendi sobre sobrevivência. Não adiantariam injeções e injeções de testosterona. Não tenho mais raízes rurais nem tampouco sou um citadino de responsa, um homem à vontade na selva das cidades. Sou presa fácil.
Creio que Marco Aurélio, o Gigante do Sul, saiba tratar dos animais de corte com o respeito que eles merecem. Talvez seja apenas uma impressão, tutameias, como Guimarães Rosa diria, mas é que Marco Aurélio vive em uma região do país em que tais laços de intimidade e interpendência entre homens e animais não tenham sido totalmente desfeitos.
Não se faz necessário dizer a uma criança do Sul que a vaca não nos dá leite em caixas. Elas conhecem de cor alguns grandes mistérios por observação e respeito à natureza.
Bem, este texto era para ser a história de Açaí, um cão de guarda preto que em noite de lua cheia, se os donos vacilarem, foge do canil em disparada em direção às águas da Baía da Guanabara a perseguir o reflexo da lua; e que, em seguida, devidamente metamorfoseado em bicho-homem, nada, nada, nada enquanto o reflexo da lua tremula sobre as águas.
Açaí volta do passeio, ofegante e feliz, com um peixe; uma bota; um pedaço de isopor. Às vezes volta de patas e focinhos vazios; às vezes, enroscado em gigogas. Como não lhe cabe contar histórias, deixa-as para mim o sabido, julgando que eu possa contá-las, mesmo ciente de que falamos em línguas diferentes.
O que eu conto, Açaí, meu melhor amigo, nada é senão o reflexo que vejo de mim mesmo a observar o brilho de seus olhos da cor de jabuticaba. Um dia desses será eu a sair das águas todo enroscado em gigogas.
Obs. do Editor: O Açaí chegou para nós, Washington e Carmola, das mãos da família Zeca Ferreira e Ialê Falleiros. A família morou e adora Paquetá, mas devido o horário das barcas sempre na contra mão com os horários para quem tem compromisso no Rio, tiveram que mudar para a Tijuca, em razão da escola dos filhos. Açaí foi encontrado pequenininho numa rodovia em Petrópolis, em meio aos carros, com risco de ser atropelado. Quem o resgatou foi a Lara Kevorkian, cuja família mora em Paquetá. E assim foi: Açaí ficou na família Kevorkian, mas a família Ferreira se apegou tanto ao mesmo que ele foi para casa destes e se “acumpliciou” ao Urso, outro cão que viva no mesmo quintal. O Urso também ficou em Paquetá com a família Leo e Thaiza e o Açaí veio para nós.
Foto feita por Washington Luiz de Araújo, o mesmo que prende, de vez em muito, o Açaí para que este não se entregue às águas da Baía da Guanabara.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.