Viúva do indigenista Bruno Pereira pede reforço na proteção de povos indígenas da Amazônia
Por Beatriz Matos|, compartilhado de Piauí
No dia 15 de junho, a antropóloga Beatriz Matos recebeu a informação que tanto temia: os restos mortais de seu marido, o indigenista Bruno Pereira, e do jornalista britânico Dom Phillips haviam sido encontrados no Vale do Javari, no Amazonas, dez dias depois do desaparecimento deles. Bruno e Dom foram assassinados e tiveram os corpos esquartejados e queimados. A polícia prendeu três suspeitos pelo envolvimento no duplo homicídio. Uma das linhas de investigação apura se o crime tem relação com a pesca ilegal de pirarucu em terras indígenas. “Até o último minuto eu tinha esperança de encontrá-lo vivo”, afirma a viúva de 43 anos, mãe de dois filhos de Bruno: Pedro Uaqui, de 3, e Luis Vissá, de 2. No relato a seguir, a professora de Antropologia e Etnologia Indígena da Universidade Federal do Pará (UFPA) relembra os dias de agonia após o sumiço do marido, a escalada da violência contra povos indígenas na gestão do presidente Jair Bolsonaro, o telefonema que recebeu do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a cobrança por uma ação firme das autoridades para evitar que crimes bárbaros como esse se repitam.
Em depoimento a Lia
Conheci meu marido, Bruno Pereira, em 2010, quando ele era o coordenador regional da Funai (Fundação Nacional do Índio) em Atalaia do Norte, no Amazonas, responsável pela Terra Indígena Vale do Javari. Eu já trabalhava no Vale do Javari desde 2005, mas naquela época morava no Rio de Janeiro, fazia doutorado e estava em viagem de campo a uma aldeia matsés da região. Conversamos rapidamente e gostei do sotaque pernambucano e do jeito debochado dele. Anos depois nos reencontramos e vivemos uma paixão avassaladora. Deixei para trás minha vida carioca e fui morar com ele num sítio perto do município de Atalaia do Norte.
Em 2016, nos mudamos para Belém do Pará porque eu havia passado no concurso para me tornar professora de Antropologia e Etnologia Indígena da Universidade Federal do Pará (UFPA). Fizemos a união estável e tivemos dois filhos: Pedro Uaqui, hoje prestes a completar 4 anos, e Luis Vissá, de 2. Enquanto eu dava aulas na universidade, Bruno realizava expedições periódicas para terras indígenas em Rondônia, Maranhão e Amazonas.
Foi um período intenso de formação dele com grandes sertanistas, como Rieli Franciscato e Altair Algayer. A floresta era o lugar onde Bruno se sentia mais à vontade. Ele queria aprender a fundo como monitorar a movimentação dos indígenas isolados, entender por onde eles andavam e de que forma os territórios deles estavam sendo invadidos. Aprendeu a falar a língua dos Matis, dos Matsés e um pouco da dos Kanamari.
Sua dedicação à causa indígena era enorme. Era um comprometimento existencial dele. Bruno tinha uma personalidade forte, era bastante intransigente, o que muitas vezes causava atritos com colegas de trabalho. Para ele, a proteção do território indígena era algo inegociável, não havia concessões, e por isso às vezes acusava outros funcionários da Funai de serem “pelegos”.
Mudamos para Brasília em 2018, quando ele assumiu a Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai. Pedro tinha apenas 2 meses. Poucos indigenistas dessa geração conseguem fazer o que ele fazia: conjugar a experiência de mato dos sertanistas mais velhos com a habilidade administrativa de conhecer a máquina do Estado. À frente do CGIIRC, Bruno coordenou ações importantes junto com a Polícia Federal para desarticular a atividade de garimpo em terras indígenas. Foi quando ele começou a chamar a atenção dos garimpeiros ilegais.
Quando conheci Bruno, ele já recebia ameaças de morte, mas houve uma escalada na violência após a entrada do governo do presidente Jair Bolsonaro. O recado do governo federal aos garimpeiros, madeireiros, pescadores e caçadores ilegais é claro: “Podem tocar o terror porque não vai acontecer nada com vocês.” Esses pescadores ilegais que confessaram a participação no assassinato do Bruno e do jornalista Dom Phillips são conhecidos há muito tempo na região. Não é de hoje que têm conflitos com os indígenas e a Funai. A novidade é a coragem para cometerem o crime em plena luz do dia, com várias testemunhas. Provavelmente acharam que seria mais um assassinato a ser esquecido.
Em 2019, um parceiro do Bruno no combate à invasão das terras indígenas do Vale do Javari, o indigenista Maxciel Pereira do Santos, foi morto com dois tiros na cabeça. Ele estava com a filha na garupa da moto quando foi alvejado na avenida principal de Tabatinga (AM). A Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) denunciou essa mesma turma do Amarildo da Costa Oliveira, o Pelado [principal suspeito de ser o responsável pelas mortes de Bruno e Dom], ao Ministério Público Federal do Amazonas e nada aconteceu.
Esses crimes bárbaros estão acontecendo em várias terras indígenas espalhadas pelo país. Todos os colegas que atuam nas regiões têm algum caso escabroso para contar. Em novembro de 2019, assassinaram Paulo Paulino Guajajara, uma das lideranças dos Guardiões da Floresta, grupo de indígenas que fazem a vigilância do território de etnias Guajajara, Kaapor e Awa-Guajá, no Maranhão.
Bruno estava incomodando muita gente. No final de 2019, ele foi exonerado do cargo de coordenador dos povos isolados após uma grande operação junto à Polícia Federal que detonou balsas de garimpo ilegal no Vale do Javari. Ele então pediu uma licença não remunerada da Funai e passou a atuar como assessor da Univaja , pois avaliava ser inviável fazer um trabalho sério na Funai sob a gestão de Bolsonaro. Voltamos a morar em Belém.
Fiquei com muita raiva quando disseram que Bruno estava numa “aventura” quando sofreu a emboscada. Ele não era nada irresponsável, pelo contrário, sempre foi muito cauteloso. Tinha porte de arma pelo menos desde 2015 por causa das ameaças. Dom estava escrevendo um livro sobre a Amazônia e Bruno foi levá-lo para entrevistar os ribeirinhos. Ele estava conversando com o pessoal das comunidades sobre as alternativas de manejo do pirarucu. Muitos pescadores mantêm diálogo com a Funai e os indígenas. É uma tarefa difícil porque a pesca ilegal e o tráfico de drogas rendem muito mais dinheiro do que o manejo. Minha impressão é de que, insuflada pelos discursos desse governo federal, a turma do Pelado quis impor outro regime: “Não vamos mais negociar. Agora quem manda aqui somos nós.”
Eu estava com meus filhos em Belém quando recebi a notícia do desaparecimento de Bruno. No domingo (5/06) à noite, o Beto Marubo, da Univaja, me ligou: “Bia, o Bruno estava retornando de uma reunião, era para ter chegado a Atalaia por volta das nove da manhã e não chegou. Estamos com nossas equipes de busca atrás dele.” Levei um susto na hora, mas não fiquei desesperada porque conheço a região. Pode acontecer de a canoa alagar e a pessoa ficar pendurada numa árvore esperando por ajuda. Achei que fosse o caso do Bruno.
A agonia foi crescendo conforme os dias foram passando e não havia sinal dos dois. Eu combinei com uma amiga que ela poderia ficar comigo e meus filhos em casa, caso acontecesse alguma coisa grave. Sou de Belo Horizonte e o Bruno era de Recife, então minha rede de apoio em Belém é formada apenas por amigos.
Mantive a esperança de encontrá-lo vivo até o último minuto, mas é claro que, à medida que os dias passavam, as chances diminuíam. Eu me apegava às histórias de outros sertanistas e lembrei do caso de um grupo que sobreviveu a uma queda de avião no Vale do Javari. A aeronave caiu na água e, dois dias depois do acidente, quando todos haviam sido dados como mortos, os indígenas encontraram os sobreviventes. Entre eles, havia uma grávida que deu à luz uma menina.
Fiquei em contato permanente com o Beto Marubo, da Univaja, e com o pessoal da OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato), uma organização não governamental que o Bruno, eu e outros colegas fundamos em 2020. Quatro pessoas da OPI estavam acompanhando as buscas no local. Quando encontraram as mochilas com os objetos deles amarrados no fundo do rio ficou claro que o pior podia ter acontecido. Mandaram uma foto e reconheci a bermuda do Bruno e a carteirinha do plano de saúde dele. Foi avassalador.
Esses dias de buscas foram uma loucura. Eu passava o tempo todo acompanhando o Twitter, as mensagens no WhatsApp, atualizando as páginas de notícias. Não dormi quase nada porque estava ansiosa demais. Na segunda-feira (13/6), li no Twitter que a embaixada brasileira em Londres havia avisado a família do Dom de que os corpos tinham sido encontrados. Senti taquicardia na hora, mas logo raciocinei: “Calma, pode ser que seja fake news.”
Eu estava certa de que receberia as notícias em primeira mão do pessoal da OPI e da Univaja. Liguei para a Carolina Santana, do OPI, e ela me falou: “Não é verdade, o pessoal continua com as buscas, não encontraram corpo nenhum.” Demoraram algumas horas até voltarem atrás e desmentirem a informação.
Vivi uma montanha russa de emoções: do desespero à esperança, da tristeza à alegria, até que a notícia que eu mais temia chegou. Na quarta-feira (15/6), a Carolina Santana, do OPI, me ligou e disse: “Bia, recebi a notícia lá do pessoal no campo: encontraram os corpos.” A palavra corpos, na verdade, era um eufemismo, porque eles foram esquartejados e queimados. Encontraram os restos mortais deles. Mas a única coisa que eu conseguia pensar na hora era: “Tomara que o Bruno não tenha sofrido.” Fiquei aliviada quando soube que primeiro ele levou um tiro e já não estava vivo quando o resto da barbárie aconteceu.
Não sei de onde tirei forças para enfrentar esse horror. Ao mesmo tempo em que eu tinha que lidar com os detalhes devastadores da tragédia, precisava tomar providências práticas, como ir ao dentista buscar a radiografia da arcada dentária do Bruno para comprovar que os restos mortais eram mesmo dele.
A questão mais delicada era dar a notícia aos nossos filhos. Recebi uma orientação da minha psicanalista. Quando o Bruno não voltou, falei: “Papai teve um problema muito grande no trabalho, vamos ter que esperar porque ele está com dificuldade.” Eles perguntaram: “Mas o papai vai voltar?” Falei: “Não sei, mas temos que torcer para que sim. A mamãe está chateada, mas o papai é forte.” Quando recebi a confirmação da morte, expliquei: “O papai estava defendendo os indígenas e tinha um pessoal que queria invadir a terra deles. Aí teve uma briga e o papai não vai mais conseguir voltar.” Pedro, o mais velho, perguntou: “Mataram o papai?” Respondi: “Sim.” Luis, o caçula, questionou: “Mas atiraram nele?” Tive que contar a verdade.
Elaborei então a parte espiritual: “Mas, olha, o papai vai estar sempre aqui com a gente, ele vai viver nos nossos corações.” Os dois ainda estão digerindo o que aconteceu. Em muitos momentos falam do pai, lembram do que fazia. Levei os dois para minha cidade natal, onde se distraem com as primas. Estou tentando preservá-los ao máximo do assédio de jornalistas. Não deixei que fossem ao velório do pai porque seriam alvo fácil das câmeras.
Fiquei impressionada como povos indígenas de diferentes etnias tomaram para si a morte do Bruno. Recebi vídeos dos Matsés raspando o cabelo, algo que eles só fazem quando os parentes deles morrem. Vi homenagens dos Kanamari, dos Guarani e dos Kayapó. É como se dissessem: “Estão matando a gente e estão matando os nossos aliados.” Apesar de nunca terem atuado ao lado de Bruno, os Pankararu e os Xukuru foram homenageá-lo cantando suas músicas no velório em Recife. Foi emocionante ver esse reconhecimento porque ficou claro que a importância do Bruno extrapolou as fronteiras do Vale do Javari.
Trabalho com os indígenas há anos e é muito raro receber esse tipo de reconhecimento. O mais comum é eles ficarem desconfiados: “Vocês são brancos e vieram roubar a nossa cultura. Querem ganhar dinheiro às nossas custas.” Para mim, a parte espiritual do Bruno está muito bem encaminhada. Eu realmente acredito que ele está comigo e com os meninos. Posso ouvi-lo dizer no meu ouvido: “Ô, Beatriz, se liga, para de chorar. Vai em frente, que você é forte.”
Bruno seguia os rituais xamânicos e tomava ayahuasca com os indígenas. No vídeo que viralizou, ele canta uma música que é de iniciação dos pajés Kanamari. Fala sobre a árvore da ayahuasca que dá sua seiva aos pajés, assim como a arara dá comida na boca dos filhotes. Bruno cantava essa música para os meninos dormirem. Quando os Kanamari explicaram a canção à imprensa, eles fizeram uma metáfora com o Bruno: “Assim como a arara alimenta os filhotes, o Bruno também nos alimentava.” Os indígenas dizem que ele virou um encantado, um espírito protetor da floresta.
Quando a morte foi confirmada, o ex-presidente Lula me ligou para prestar condolências. Disse que quer se encontrar comigo quando for a Belém. Já de Bolsonaro não recebi ligação nenhuma. Pelo contrário: ele realizou uma motociata em Belém dois dias depois de encontrarem os corpos de Bruno e Dom. No velório em Recife havia representantes dos governos estadual e municipal, mas ninguém da esfera federal.
Eu desejo que os assassinos sejam presos e paguem pelo que fizeram, mas, mais fundamental do que isso, é evitar que crimes como esses se repitam. O mais importante é que seja possível voltar a transitar com segurança pelos rios do Vale do Javari, que os servidores da Funai tenham condições de trabalhar de verdade na região, que os povos indígenas possam viver sem a ameaça de invasão e destruição de seus territórios. Ali é o meu local de trabalho e quero poder voltar lá com meus filhos para que conheçam o local onde o pai deles atuava.
Eu comparo a morte de Bruno ao assassinato do seringueiro e sindicalista Chico Mendes e da missionária americana Dorothy Stang. Ambos foram assassinados por defenderem a preservação da floresta amazônica e dos povos que vivem nela. Que a comoção provocada pelas mortes de Bruno e Dom sirva para melhorar as condições de vida dessas pessoas e de seus aliados. Nada trará o Bruno de volta, mas espero que sua morte não tenha sido em vão.