Acontece que não era negro

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A construção do perfil criminal se dá a partir de ideologias racistas, como as imagens de controle, que transformam a violência da atuação policial em letal para os afrodescendentes

De Prosa Preta, compartilhado de Projeto Colabora




Há algum tempo me incomoda a insistência, cada vez que uma abordagem policial ou um procedimento jurídico ocorre com uma pessoa branca que indiscutivelmente está infringindo a lei, levantam-se os questionamentos: e se fosse uma pessoa negra? Esse incômodo geralmente vira um monstrinho chato no peito que só se acomoda quando ele pode rugir bem alto seus desconfortos para explicar por que eles existem.

A essa altura do campeonato você já sabe que eu estudo imagens de controle, conceito do pensamento de Patricia Hill Collins, e que inclusive escrevi um livro sobre isso. No geral, quando falo em imagens de controle, abordo aquelas que dizem respeito às pessoas negras. Mas também existem imagens de controle para pessoas brancas. Elas, no geral, são baseadas não em estereótipos negativos e desumanizadores, mas em características que vão sustentando padrões de humanidade que excluem pessoas negras da possibilidade de serem consideradas sujeitos de direito.

São as imagens de controle que ao mesmo tempo consolidam a imagem do negro como elemento suspeito e a imagem do branco como corpo a se presumir inocente.

A imagem de controle das pessoas negras como suspeitas é uma construção histórica que visa culpabilizar, punir, controlar e encarcerar a negritude. Ideologicamente essa construção é tão perfeita que permeia vários aspectos da sociedade, inclusive o imaginário popular. Você certamente já ouviu a frase: “branco correndo é atleta, preto correndo é ladrão”. É máxima tão presente nas Américas que inclusive pessoas negras, sobretudo homens, evitam correr.

O buraco é tão profundo que pessoas negras têm feito protestos e eventos para ter direito a atividades físicas sob o lema “não é assalto, é cárdio”. Ou seja, mesmo a busca por saúde e bem-estar é prejudicada pelo racismo. A gente que é preto vai buscar saúde e bem estar e pode acabar encontrando um ação da polícia que resulte em agressão, prisão e/ou assassinato.

A construção da imagem “suspeita” da população negra é um pilar para que essas situações sejam rotineiras e não causem grandes comoções. É a imagem que sustenta o que chamamos de perfilamento racial.

É o ato discriminatório promovido pelos agentes de segurança pública e instituições jurídicas de mirar determinados indivíduos apenas pela raça, cor de pele, etnia, religião ou nacionalidade. No contexto brasileiro, sobretudo baseado na raça. Pessoas negras, portanto, são visadas como suspeitas e o tratamento destinado a elas em abordagens policiais não é o mesmo dado aos brancos. A desconfiança de que essas pessoas são criminosos em potencial é o que motiva o perfilamento racial.

A construção do perfil criminal se dá a partir de ideologias racistas, como as imagens de controle, que transformam a violência da atuação policial em letal para os negros. Mais: os discursos hegemônicos sobre segurança pública e combate à criminalidade fazem a sociedade acreditar que determinadas características físicas estão associadas a uma pré-disposição ao crime. Não há, obviamente, tem evidência cientifica a sustentar tal crença, mas ela se mantém a partir de discursos que sustentam o próprio racismo.

É por isso que você atravessa a rua quando um jovem negro caminha na mesma calçada. Você desconfia dele e confia na ideologia racista. É por isso que existem tantos relatos de racismo por parte da polícia no cotidiano de pessoas negras. É por isso que é mais comum que pessoas brancas passem ilesas em barreiras policiais e que pessoas negras sejam paradas.

É por isso que quase todo jovem negro, independentemente da classe social, tem uma história de atraque para contar. Uma história que envolve um agente policial revirando uma mochila sem nenhum cuidado às cinco horas da tarde, porque esse jovem resolveu correr para não perder o ônibus para faculdade. Uma mochila revirada que se transformou em um “mão na parede!” gritado no ouvido, uma arma apontada na cabeça e muitos chutes nos membros inferiores e genitais.

É por isso que mulheres negras ficam absolutamente constrangidas de serem selecionadas em uma revista aleatória de aeroporto. Temos um medo muito racional de que esses procedimentos possam significar uma infinidade de violências sobre os nossos corpos motivadas apenas pela cor da nossa pele.

Eu poderia ficar aqui citando vários exemplos de como o perfilamento racial nos atinge, mas também é importante mostrar como que a existência dele garante para pessoas brancas tratamento jurídico e policial que atende o que chamamos de devido processo legal. Até mesmo no que diz respeito a réus confessos, quando são brancos recebem respeito e cordialidade, sem excessos nem violências que são cotidianas para a população negra. O problema não está nessas pessoas serem tratadas assim – mas em ser privilégio delas.

O risonho policial federal diante de Roberto Jefferson: abordagem para branco. Reprodução
O risonho policial federal diante de Roberto Jefferson: abordagem para branco. Reprodução

A exclusividade é resultado de um sistema de justiça todo mobilizado para determinadas pessoas receberem tratamento humanizado e digno. E que outras pessoas recebam tratamento degradante que deixe evidente que elas são menos humanas, portanto menos merecedoras dos tais direitos fundamentais que, quando violados, sempre encontram os mesmos corpos. É do sistema. É do jogo. É feito para funcionar assim.

Quando falamos em perfilamento racial e no impacto da desconfiança socialmente construída sobre pessoas negras, estamos tratando não apenas das situações onde agentes de manutenção da ordem usam métodos racistas. Não estamos falando apenas do segurança do supermercado que persegue os negros da hora que eles entram no estabelecimento ao momento em que saem. Estamos falando da consequência brutal que essa desconfiança causa.

Estamos falando da supressão de muitos aspectos da vida social da população negra e estamos falando diretamente da consequência mais brutal dela: a morte violenta. Estamos falando sobretudo da omissão. Da conversinha fiada que tanta justificar o tratamento desumano, daquele papo de que se a polícia bateu foi porque mereceu. Estamos falando inclusive, de você, que assiste a pessoas negras serem tratadas de forma violenta e deixa aquela vozinha lá no fundo da sua mente dizer com perversidade: bem feito, é isso que essa gente merece.

Nada muito diferente da época em que pessoas brancas compravam ingressos para assistirem a pessoas negras sendo violentadas até a morte em sessões de linchamento.

Não faz sentido a gente equiparar o tratamento policial entre negros e brancos porque ele não é passível de comparação. Um é do tipo que prevê humanidade e manutenção de direitos. Não ia pegar nada bem para sociedade brasileira, fundamentada na branquitude, que um homem branco fosse conduzido violentamente pela Polícia Federal para a prisão. Esse não é o recado que a instituição quer passar. O recado, a propósito é bem outro: o deixa evidente quais são os corpos matáveis e quais são aqueles cuja vida deve ser preservada, custe o que custar.

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