Por Carlos Boyero, compartilhado de El País –
Vários filmes refletem sobre a criação da sétima arte ou a extinção desta em seu ambiente natural, uma triste ameaça em tempos de coronavírus
O ritual durava mais de cem anos. E muitos de seus paroquianos confirmarão que, entre as melhores coisas que lhes ocorreram na vida, o ato de ir ao cinema ocupou um lugar privilegiado. Sozinhos ou acompanhados, esse refúgio, esse prazer, as sensações que provocava, o devaneio, a capacidade de descobrir outros mundos, narrar histórias apaixonantes, imaginativas ou realistas, a conexão com seus sentimentos mais profundos, parecia inesgotável, outorgava vida. E fazia tempo que esse público ancestral e fiel, geração após geração, tinha começado a desertar. Continuava consumindo cinema, talvez mais do que nunca, mas em suas casas, na frente da televisão, do iPad, dos celulares, das plataformas digitais. E, enquanto isso, as salas escuras choravam, habitadas quase invariavelmente por um público próximo ao outono ou já imerso no inverno de sua existência. Com exceções, reduzidas ao cinema de animação consumido pelas crianças e a certo público jovem que devora o gênero dos super-heróis, fabricado por computador.
A agonia das salas se notava, mas a invasão deste maldito predador chamado coronavírus pode acelerar sua destruição. É duvidoso que as salas, reduzindo sua capacidade a 30% ou 40% de espectadores, consigam preencher esse espaço. E tomara que eu esteja enganado, que meu temor e minha certeza sejam apenas os de um agourento afeito ao mimimi. Espero que os crentes não tenham perdido a vontade de se congregarem de vez em quando no templo, supondo que, no inferno econômico que vão atravessar os de sempre e também as classes médias, os cinéfilos ainda disponham de alguns euros para comprar o ingresso sem que isso afete suas inadiáveis necessidades cotidianas.
Trago à lembrança filmes que falavam do cinema, de sua fabricação, da evasão da realidade e da magia que outorgavam ao receptor em circunstâncias plácidas ou muito problemáticas. Também aqueles muito antigos, que já narravam o vazio que supunha para os espectadores o fechamento das salas em povoados onde as opções de diversão se centravam quase exclusivamente no cinema. Recordo a desolação de garotos à intempérie existencial no comovente A última sessão de cinema. A sala de exibição daquele povoado texano chamado Anarene, açoitado permanentemente pelo vento e pela falta de oportunidades, fechará suas portas para sempre depois da projeção da épica Rio vermelho. Quando John Wayne grita para dar início à longa marcha da boiada, ou seja, o começo da epopeia, os espectadores dessa trama sabem que em sua vida só restarão a tristeza, o fracasso, a perda e a resignação. O caminhoneiro e seu companheiro kamikaze que percorrem cidadezinhas sombrias da Alemanha consertando os projetores de cinema sabem que estes não serão mais substituídos, que as salas vão fechar. Ocorre no filme No decurso do tempo, o mais memorável que Wim Wenders fez. Um diretor cujo interesse se extinguiu muito cedo. E, como a Deus e o mundo, me saltaram as lágrimas em Cinema Paradiso quando aparece a coleção de lendários e censurados beijos cinematográficos que velho projecionista tinha zelosamente guardado. Só a Woody Allen poderia lhe ocorrer a genial ideia, em A rosa púrpura do Cairo, de que o protagonista do filme saísse da tela para oferecer aventura, idílio e proteção a uma afligida espectadora, massacrada na vida real, e cuja única tábua de salvação é a fascinação que as imagens lhe despertam. Também acontece com a inesquecível menina da emotiva e poética O espírito da colmeia quando descobre na tela o monstro de Frankenstein. A partir desse momento, procurará o encurralado monstro em sua realidade.
A trágica Glória Swanson de O crepúsculo dos deuses só vê, repetidamente, em seu velho e claustrofóbico castelo, os filmes do cinema mudo que ela protagonizou e a transformaram em estrela. O diretor convencido de que a missão do cinema só faz sentido se reproduzir a realidade do universo de lágrimas onde as pessoas sobrevivem descobrirá que os detentos em condições desumanas desejam apenas rir e sonhar ao ver o que se desenrola na tela. Falo da maravilhosa Contrastes humanos, criada pelo já intoleravelmente ignorado Preston Sturges. E são admiráveis a inextinguível paixão e a enlouquecida ousadia que o pior diretor da história do cinema exibe para conseguir rodar seus sonhos no precioso e hilariante retrato dele traçado por Tim Burton em Ed Wood.
A lista de filmes que refletem sobre a criação do cinema ou a extinção deste em seu habitat seria muito longa e comovente ao ser recordada. Mas talvez tenhamos sorte e as salas escuras sobrevivam. De forma marginal, mas ainda em pé. Os náufragos e os sonhadores continuamos precisando delas.