Por Maíra Mathias, publicado em Outras Palavras –
Decreto de Bolsonaro promove a extinção de centenas de conselhos, colocando em xeque a atuação da sociedade civil nas políticas públicas
ADEUS, PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Algumas medidas ‘comemorativas’ dos cem dias de governo Jair Bolsonaro só ficaram conhecidas na sexta, com a publicação do diário oficial. Foi assim que, logo de manhã, a agitação já tinha tomado conta de muita gente que tentava entender a amplitude do decreto 9.759, que golpeia a participação da sociedade civil nas políticas públicas federais. É que o texto fala na extinção de conselhos, colegiados e outras instâncias que tenham sido criadas por decreto, ato normativo inferior a decreto e ato de outro colegiado. Num primeiro momento, pairou a dúvida: o Conselho Nacional de Saúde está extinto?
Aos poucos, os especialistas foram dando seu parecer e, por enquanto, todo conselho criado por lei está a salvo – caso do CNS e do Conselho Nacional de Educação, por exemplo. Além disso, a participação da comunidade no SUS está prevista pela Constituição. Mas restam certas ambuiguidades e, por isso, é preciso ficar alerta. O CNS foi criado por lei, num longínquo 1937. Mas foi um decreto de 2006 que desenhou a composição atual e instituiu como deve ser a eleição do colegiado. A luta, divulgou o CNS, é pela revogação do decreto. (Já existe um projeto de decreto legislativo que susta a norma, de iniciativa do senador Humberto Costa (PT/PE) e outros nomes da oposição, como o ex-ministro Alexandre Padilha, deputado pelo PT/SP.)
Mas o fato é que centenas de outras instâncias correm perigo. Ao que tudo indica, o decreto vai agir como uma espécie de peneira. Segundo o governo, o objetivo é diminuir de 700 para menos de 50 o número de conselhos e outras formas de participação. Para o ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni, havia uma “visão completamente distorcida do que é representação e participação da população” e os conselhos tiveram como gênese “a visão ideológica dos governos” anteriores. Mas o que parece que vai acontecer é a extinção das instâncias que não interessarem ao governo Bolsonaro que vai analisar a justificativa de criação de cada um e decidir qual deve e qual não deve existir. Assim, é possível adiantar que um colegiado como o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), com sua composição atual majoritariamente alinhada com as políticas governistas, tem grandes chances de ser recriado. O mesmo se aplica ao Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade), dada a atuação da primeira-dama Michele Bolsonaro nessa pauta. Já outros como o Conselho Nacional de Política Indigenistacorrem bem mais risco de desaparecer.
CONFERÊNCIA SOB RISCO
E talvez não seja por acaso que a 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena, marcada para acontecer entre os dias 27 e 31 de maio em Brasília, com previsão de reunir 2,2 mil pessoas, também esteja correndo risco. Um parecer da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde assinado na quarta (10) questionou o processo de contratação da empresa responsável por organizar o evento. A recomendação é que o trâmite, iniciado em setembro do ano passado, seja recomeçado do zero, inviabilizando a manutenção da data, decidida quase um ano atrás. Mas isso não foi tudo.
Na mesma quinta-feira em que comemorou cem dias de gestão, Bolsonaro fez mais uma de suas transmissões ao vivo pelo Facebook. E disse: “Vai ter um encontrão de índios agora, semana que vem. Está sendo previsto dez mil índios aqui em Brasília. E quem vai pagar a conta dos dez mil índios que vêm para cá? É você [contribuinte]. Queremos o melhor para o índio brasileiro, que é tão ser humano quanto qualquer um de nós que está na sua frente aqui. Mas essa farra vai deixar de existir no nosso governo”. O presidente se referia ao Acampamento Terra Livre que existe há 15 anos e nada tem a ver com dinheiro público, como rebateu a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. A sucessão de fatos, contudo, deixa muitas dúvidas. Teria Bolsonaro confundido o Acampamento com a 6ª Conferência, esta sim, financiada com recursos públicos – como, aliás, todas as conferências? Seria o parecer jurídico uma forma de encobrir, com argumentos técnicos, uma decisão que na verdade seria política e vinda de um escalão mais alto?
Entrevistamos o conselheiro nacional de saúde Yssô Truka, que é membro da comissão organizadora da conferência. Para ele, trata-se, sim, de retaliação. “O governo queria acabar com a Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena], a gente fez um trabalho de pressão. O governo recuou. Mas, como retaliação, ele de uma hora para outra encontra uma série de empecilhos para a realização da conferência.” Truka adianta que o movimento indígena decidiu dobrar a aposta e não abre mão da realização da 6ª Conferência na data prevista. “O governo querendo ou não, nós vamos fazer a conferência”. Confira a entrevista.
DOMÍNIO ÚNICO
O governo também resolveu extinguir todos os sites que têm o final “gov.br”. A previsão é que em dezembro de 2020, haja um único portal. Isso atinge não só ministérios, mas também autarquias como o IBGE (que vem sendo questionado por Bolsonaro, lembremos) e o Inep, que faz o Enem e está na roda viva de disputas olavistas. Além do risco de censura de informações, já que os órgãos provavelmente perderão a autonomia que têm, preocupa que se restrinja a quantidade de informações disponíveis. É só fazer um teste e navegar pelo site do Ministério da Saúde, por exemplo. Cada secretaria e, às vezes, cada programa tem sua página, com notícias, documentos. De acordo com o governo, a medida é “moderna” e vai economizar R$ 100 milhões por ano.
DESMENTIDO
Com tanta incerteza, circulou domingo o boato de que o governo pretendia acabar com o currículo Lattes depois do feriado da Semana Santa. O CNPq, responsável pela plataforma, lançou nota desmentindo.
REDUÇÃO DE DANOS EM DEBATE
E a Política Nacional sobre Drogas do governo Bolsonaro continua repercutindo. Para o Conselho Federal de Psicologia, o decreto que instituiu a nova PNAD põe fim à estratégia conhecida como “redução de danos”, que prevê que nem todas as pessoas têm condições de parar o uso de drogas abruptamente, pelo menos não nos estágios iniciais do tratamento. No lugar, coloca como único caminho terapêutico a abstinência. Hélio Schwartsman compara na Folha: “Há políticas públicas que são ‘one size fits all’ (de tamanho único) e outras que não são. (…) Se o sujeito é um dependente pesado e tem inclinações religiosas, o internamento numa comunidade terapêutica com vistas a alcançar a abstinência tende a ser uma boa pedida. Se, porém, a cessação total do hábito já se demonstrou uma meta irrealizável para aquele paciente ou se ele rejeita a espiritualidade das comunidades terapêuticas —grande parte delas é ligada a igrejas—, pode-se adotar uma abordagem menos ambiciosa, que procure reduzir o número de episódios de uso e diminuir os impactos negativos para a saúde. (…) Os serviços de saúde precisam oferecer alternativas para todos os perfis de usuário. Priorizar um tratamento é antirrepublicano, pois acaba excluindo parte dos pacientes.”
A pesquisadora Dayana Rosa fala noOutra Saúde sobre o contexto do tema não só por aqui, mas internacionalmente. É que no fim de março, aconteceu uma sessão especial da ONU para tratar do tema das drogas. Apesar de, mais uma vez, o documento final falar sobre a meta de “promover ativamente uma sociedade livre do abuso de drogas”, internamente, a discussão sofisticou-se. E revela, inclusive, paradoxos. O Brasil, por exemplo, patrocinou junto com dez países uma resolução que promove a prevenção da transmissão do HIV em mulheres que usam drogas, através da Profilaxia Pós-Exposição, a PEP. O texto foi considerado um avanço. Ao mesmo tempo, no âmbito doméstico, veio a nova PNAD. Mas, ela lembra, essa guinada é resultado de uma articulação que só recentemente ganhou musculatura no governo federal, tendo começado a dar as caras com a nomeação de Valencius Wurch ainda na gestão de Marcelo Castro (os riscos aí eram mais ligados ao retorno da hospitalização como eixo do cuidado aos transtornos mentais) e, depois, com a chegada de Quirino Cordeiro Jr., nome ligado à Associação Brasileira de Psiquiatria.
Para Dayana, além das contradições na nova PNAD (o texto, por exemplo, prevê a necessidade de realização de pesquisas, num momento em que tornou-se público que uma das maiores pesquisas científicas sobre uso de drogas no país ficou engavetada desde 2016 porque a conclusão é que o país não vive uma “epidemia” de uso de drogas), a estratégia de redução de danos é resiliente. “A RD nunca precisou de lei para se fazer acontecer e não será agora. O acontecimento redução de danos não se restringe à troca de seringas e distribuição de camisinha, foi e segue sendo um fenômeno de novas possibilidades de percepções do mundo, novas possibilidades de mundo, ou ‘apenas’ novas possibilidades. O crack, que chegaria para bagunçar as estratégias da RD, potencializou ainda mais esse mecanismo, moldou políticas e empurrou o debate para frente.”
UFANISMO EM PROGRAMA MENOR
Até maio, o Ministério da Saúde deve enviar ao Congresso o projeto de remodelação do programa Mais Médicos. Segundo a coluna Painel, da Folha, vai rebatizá-lo em tom ufanista: será “Médicos pelo Brasil”. E ficará restrito a cidades consideradas como altamente vulneráveis – ou seja, capitais estão fora. Mesmo que as periferias dessas metrópoles sofram com falta de profissionais.
PATOLOGIZAÇÃO
O deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) pretende apresentar em 15 dias um projeto de lei que caracteriza a homofobia como “patologia psiquiátrica”. A correria se deve ao julgamento, em curso, no Supremo Tribunal Federal. Até agora, os ministros apontam que o Congresso Nacional foi omisso em proteger essa minoria ao nunca ter tipificado atos de violência contra a população LGBTQ como crime. Acontece que Sóstenes é da bancada da Bíblia e quer garantir “liberdade de expressão” para religiosos que condenem a homoafetividade e digam que é pecado. Segundo o Estadão, o parlamentar consultou “especialistas” para tentar levar a homofobia, fenômeno social, para o campo das doenças mentais. Dessa forma, uma junta médica teria o poder de avaliar, caso a caso, se no crime em questão pode ser aplicado o novo agravante ou não.
IRRESPONSABILIDADE MATA
Levantamento da Folhamostra que a adoção de radares em estradas federais foi responsável, em 12 anos, por uma diminuição de 21,7% no número de mortes e 15% no de acidentes. O governo não quer renovar o contrato de radares, como já dissemos por aqui.
LIXÕES: MAU NEGÓCIO
Cidades com alta dependência da transferência de recursos estaduais e federais, com área muito grande e população espalhada e que investem pouco em educação são mais propensas ao surgimento de lixões. A conclusão é de um estudo que será lançado hoje elaborado pelo Sindicato Nacional das Empresas de Limpeza Urbana (Selurb). O assunto ressurge porque durante a marcha dos prefeitos, que ocorreu em Brasília semana passada, articulou-se um acordo com os presidentes da Câmara e Senado de aprovar com urgência um PL que dê salvo-conduto às cidades que não cumpriram a determinação da Política Nacional de Resíduos Sólidos de dar fim aos lixões até julho de 2014. Hoje, são três mil lixões. E, segundo o levantamento do Selurb, que pesquisou 3.374 municípios em 2018, 53% deles têm lixões.
Para o pesquisador da Coppe/UFRJ Luciano Basto Oliveira, apesar de mais barato, o lixão é uma “armadilha” porque traz consequências que sairão mais caras no médio e longo prazo. “Os maiores riscos são o da contaminação do solo e do lençol freático (com eventuais problemas de saúde para a população). Estudo da Organização Mundial de Saúde mostra que metade dos leitos hospitalares do mundo são ocupados por doenças relacionadas à falta de saneamento básico”, disse em entrevista ao Estadão.
FEDERALIZAÇÃO?
E durante a marcha dos prefeitos, o atual presidente da Confederação Nacional de Municípios, Glademir Aroldi, defendeu que as carreiras de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemias sejam federalizadas. Presente no encontro, o ministro Mandetta discordou e disse que esses profissionais deveriam ser qualificados como “técnicos comunitários de saúde”, com a prerrogativa de medir pressão, por exemplo. Isso economizaria recursos das prefeituras, afirmou. O vídeo está circulando nas redes da categoria.
EXECUTIVO ABRE O JOGO
Pascal Soriot, executivo da farmacêutica AstraZeneca, deu entrevista à coluna Mercado Aberto da Folha sobre compartilhamento de riscos, quando a empresa e o governo assinam um contrato em que, em tese, se o medicamento não atinge certos parâmetros de sucesso no tratamento, as empresas devolvem o dinheiro que receberam aos cofres públicos. Segundo ele, “há muito barulho no novo governo” em torno desse modelo – Mandetta anunciou a adoção da modalidade no caso de doenças raras em fevereiro –, mas só funciona se o governo consegue capturar os dados. Em outras palavras, “provar” se deu certo ou errado a adoção do medicamento. Para ele, no Brasil isso é complicado. Na entrevista, Soriot elogiou muito a Anvisa – que, segundo ele, “tem feito um trabalho fantástico” – mas, de maneira reveladora, afirmou que liberar rápido os registros de novos medicamentos é bom, mas é preciso que alguém pague por eles… “Saímos de um problema regulatório para um problema de ressarcimento”. E defende a diminuição dos impostos sobre medicamentos no Brasil que, segundo ele, estão na casa dos 34% e poderiam baixar para 10% ou receber isenção tributária.
DEU PRA TRÁS
A New Food Economyconta como a OMS retirou seu apoio da chamada “dieta planetária saudável” recém-divulgada por comissão EAT-Lancet, cujo princípio é equilibrar qualidade na nutrição e proteção do meio ambiente. Para isso, a dieta preconiza a redução do consumo de carne, já que a criação de animais tem impactos consideráveis nas emissões que contribuem para o aquecimento global. A redução também está em linha com pesquisas que apontam que o consumo de carne vermelha pode aumentar a probabilidade de doenças como câncer. Pois bem: o embaixador italiano junto às Nações Unidas Gian Lorenzo Cornado questionou o impacto econômico que a diminuição no consumo de carnes teria nos países produtores, particularmente nas nações em desenvolvimento. Num comunicado à imprensa, a embaixada afirma que a OMS não deveria ter nada a ver com o lançamento da dieta (que aconteceu em 28 de março e estava sendo previsto como um evento da própria organização) e que a comissão EAT-Lancet não era independente, mas visava a “total eliminação da liberdade de escolha” de consumidores. A pressão funcionou e, apesar do lançamento ter acontecido, a OMS não apareceu como patrocinadora. Em tempo: a dieta prevê variação de país para país, contemplando especificidades, inclusive econômicas.
EBOLA
E a OMS decidiu na sexta-feira que o surto de ebola na República Democrática do Congo não pode, ainda, ser caracterizado como uma emergência de saúde pública internacional. A decisão está sendo questionada por especialistas, que acreditam que o organismo precisa chamar atenção para o problema, condição essencial para que a arrecadação de recursos para combatê-lo aumente.