Adolescência: triunfo de teatro no audiovisual

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Acho que foi a Fernanda Torres que, numa de suas inúmeras entrevistas recentes, disse: “a coisa que um ator mais faz é esperar”.

Por Léo Bueno, compartilhado de Construir Resistência




É verdade. Antes de filmar uma cena, o ator tem que aguardar o cenário ficar pronto, a luz estar ajustada, o equipamento funcionar direito, o switch, a maquiagem – é muita coisa. Por isso os maiores filmes geralmente são feitos ao longo de três meses ou mais, uma ou no máximo duas cenas ao dia. E às vezes elas têm de ser refilmadas, por exigência do diretor ou do continuísta.

Vai daí que eu duvide-o-dó totalmente do que a  Netflix anda divulgando sobre a série ‘Adolescência’. São quatro episódios de 50 minutos a uma hora, e cada qual apresentado num único plano-sequência, sem cortes do começo ao fim.

Cinéfilos amam planos-sequência. A série é uma regalia. Mas acreditar que a equipe de produção começava ao amanhecer e rodava 10 vezes o mesmo episódio até chegar a noite são outros quinhentos. Nem caberiam 10 tomadas de traveling de uma hora entre o nascer e o pôr-do-sol, não com os preparativos necessários e os milhares de erros inevitáveis que ocorrem numa filmagem.

Não vou fazer um cavalo de batalha, mas alguém precisaria de muita saliva para convencer este São Tomé aqui de que as cenas contínuas não foram grudadas uma na outra por efeito digital ou mesmo IA.

Feita a ressalva, a Netflix andava em queda franca, já distante do tempo de lançar filmes de Scorsese, Cuarón, Fincher ou Sion Sono. O que lançava era, na melhor das hipóteses, médio. Aqui ela marcou um golaço. ‘Adolescência’ é um triunfo do começo ao fim

MULTIMÍDIA – Se o que distingue o audiovisual de outras artes é a edição, a série pode ser adjetivada como um triunfo teatral, e será uma adjetivação bastante precisa. São quatro roteiros mais lapidados do que pedra em Ovo Fabergé. E o que arranca no espectador as sensações desejadas pela produção são as encenações efetivamente teatrais de um elenco preparado à excelência. Como a movimentação de câmera ajuda no processo, você pode dizer que ‘Adolescência’ é um triunfo multimídia. Ou, pelo menos, quase.

Três pessoas estão por trás do esforço: o produtor Jack Thorne, o diretor Philip Barantini e o ator Stephen Graham, que também produz, além de interpretar o pai do adolescente central. Graham já havia trabalhado com Barantini no bom ‘O Chef’, aliás outro filme que experimenta muito com planos-sequência.

O adolescente central, no caso, é Jamie Miller, que numa manhã qualquer tem sua casa invadida e devassada pela polícia do norte da Inglaterra e vai preso sob uma acusação muito grave. Esse é o início da história, e a acusação será esmiuçada no decorrer dela.

Falar muito mais sobre o enredo pode anestesiar a experiência. Digamos apenas que a ação não se centra num único personagem: nos dois primeiros episódios, a câmera pula nervosamente entre policiais, civis, professores, alunos, toda a fauna de hábito, só que aqui vestida numa carapuça de gente real, driblando com habilidade os clichês das histórias adolescentes. Isso embora os temas já tenham sido representados numa penca de filmes: a insegurança adolescente, a violência, o conflito familiar, a culpa, a solidão, o machismo, a misoginia.

E, especialmente, o bullying, esse verdadeiro patrimônio anglo-saxão produzido para consumo interno e exportado com sucesso no mundo todo. Formas bem modernas dele ganham vida na produção. Adolescentes que viram a série me disseram que ela retrata muito fielmente a sinuca de bico do mundo dos incels e dos redpills e dos rapazes e moças ao redor de quem eles orbitam. No fundo, no fundo, é a forma que a cultura do ‘winner’ versus ‘loser’ adota nestes tempos de rede social.

HABILIDADE TEATRAL – São temas que perpassam cada episódio e evoluem calma, mas assertivamente, sempre conduzindo-o para um clímax catártico. E que, se opera na gente como um soco no estômago, é, de novo, graças à habilidade teatral do elenco em interpretar situações-limite.

Por exemplo: o ator Owen Cooper, que interpreta Jimmy Miller, tem 15 anos e seu personagem 13. Acreditar que ele entregou essa atuação para uma câmera contínua sem nunca ter trabalhado no teatro ou na  TV não é difícil, é impossível. A não ser que a câmera não fosse assim tão contínua.

Mas quem dá o soco mais forte no nosso estômago é mesmo Stephen Graham, e não por causa de seus músculos. Rosto mais conhecido da produção, ele não é familiar a quem não esteja habituado a pequenas produções britânicas. Esteve numa série excelente, ‘Riding Hood’ e seu filme mais conhecido é ‘Porcos e Diamantes’, no qual faz um papel importante, mas discreto.

Espécie de autor da produção, Graham parece ter se inspirado no Cinema Novo inglês, aquela nova geração dos anos 70 que largou os temas britânicos de hábito – mistérios sherlockianos, a aristocracia, as guerras – para mostrar o dia-a-dia de classes populares nada refinadas num país famoso por ser ‘snobish’. Há um tanto de grandes cineastas como John Schlesinger, Tony Richardson e Lindsay Anderson em ‘Adolescência’.

Preparada a história, então, Graham passou para a frente das câmeras. E deu um espetáculo como o pai que não consegue lidar com a fragilidade e a culpa de ter um filho preso depois de ter sido criado para ser durão. Aposto meu sobretudo inglês em que ele vai ganhar uma bacia de prêmios. A cena final – se recortada do plano-sequência – é digna de antologia.

Alguém aqui comparou ‘Adolescência’ ao filme ‘Precisamos Falar sobre o Kevin’. As similaridades são óbvias e a referência muito feliz, só que há uma diferença marcante entre as duas histórias. O longa retrata a história de um psicopata e de como a família não sabia lidar com a psicopatia dele desde o processo de crescimento. Mas psicopatas são personagens com um peculiar conjunto de características para defini-los; no cinema, poucos deles não são unidimensionais. Jimmy Miller não é um psicopata; pelo contrário, ele é um caldeirão de emoções – frustração, carência, fragilidade, certa simpatia e uma raiva incontrolável herdada do ambiente, da família e da sua própria condição de adolescente desprezado.

Se você não viu, veja. Nem que seja só para apreciar os planos-sequência. Ou, ora bolas, para discordar dos tantos elogios que costurei. Mas também duvido que você faça isso.

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