Por Ana Aranha, compartilhado de Repórter Brasil –
José Vargas Júnior, que acusou a polícia civil e militar pelo assassinato de dez pessoas na chacina de Pau D’Arco, foi preso devido a mensagens irônicas enviadas por áudio. ‘A polícia interpretou piadas como uma confissão’, diz sua defesa.
Quase quatro anos depois da chacina de Pau D’Arco, no Pará, os 16 policiais civis e militares que são réus pelo homicídio de dez trabalhadores sem-terra estão soltos e exercendo suas atividades enquanto aguardam julgamento. Apenas uma pessoa ligada ao caso está presa: o advogado das vítimas e do assentamento onde ocorreu a chacina, José Vargas Júnior.
Ele foi detido no 1º dia do ano, acusado de envolvimento em outro caso de homicídio. “O que a polícia tem contra ele é extremamente frágil, são piadas que ele enviou por áudio a um amigo”, afirma seu advogado Marcelo Mendanha, que é presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Redenção (PA). “Mensagens irônicas, em claro tom de brincadeira”.
A polícia apreendeu o seu celular e computador. Até o momento, o advogado preso se negou a dar as senhas, mas sofre constante pressão para ceder, como forma de colaboração com as investigações. Com essas senhas, a polícia teria acesso a denúncias sigilosas que sem-terra e indígenas fizeram sobre a própria polícia. Mais de vinte organizações de direitos humanos denunciaram a prisão e manifestaram apoio público a Vargas, entre elas a Front Line Defenders, a Justiça Global, a Terra de Direitos e a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil.
Vargas ganhou certa fama local por mover ações que contrariam grandes grupos econômicos da região. Além das vítimas e assentados do caso da chacina, ele defende os indígenas Kayapó contra a invasão de seu território por mineradoras e ganhou ação emblemática movida por trabalhadores sem-terra contra a JBS.
“Ele sempre foi uma pedra no sapato”, resume um amigo.
Vargas é conhecido por questionar abertamente a polícia e o Judiciário local – coisa que poucos que moram na região têm coragem de fazer. Seu último movimento, no caso da chacina, foi denunciar a parcialidade do juiz que autorizou a reintegração de posse da área ocupada. O juiz Haroldo Silva da Fonseca autorizou o despejo das mais de cem famílias que vivem e produzem desde 2013 na área onde houve a chacina. Entre elas, estão os sobreviventes do massacre. A remoção só não ocorreu ainda devido à pandemia.
“A vara agrária continua como despachante de latifundiário”, declarou Vargas logo após a audiência, em janeiro de 2020, para matéria publicada pela Repórter Brasil. Na ocasião, o promotor Leonardo Caldas, que representa o Ministério Público Estadual na ação de reintegração, criticou uma estratégia jurídica usada por Vargas para tentar tirar o juiz do caso e adiar o despejo. O promotor moveu uma representação contra Vargas na Ordem dos Advogados do Brasil. Caldas é o mesmo promotor que pediu a prisão de Vargas.
“São fatos totalmente independentes, não há relação de causa e efeito”, afirma o promotor. “A prisão do Vargas se deu agora, em 2020. O fato dele ter atuação ativa na Santa Lúcia [fazenda onde houve a chacina em 2017] são matérias totalmente diferentes. Um caso é conflito agrário, o outro é o homicídio de presidente de uma associação dos epilépticos que estava em vias de receber verbas públicas. Não tem nenhuma zona de intersecção”.
A polícia bateu no portão da casa de Vargas no 1º dia do ano, logo depois do café da manhã com suas filhas de 6 e 8 anos. Quando ele e sua companheira leram o motivo que justificava o pedido de prisão temporária por suspeita de envolvimento em um homicídio, ele levou as mãos à cabeça, incrédulo. Na sequência ouviu uma bronca de sua companheira: “Não acredito, José. Eu falei pra você parar de falar besteira no celular!”.
Desde então, ele está preso preventivamente. “Eu ainda não consigo acreditar”, disse à reportagem na primeira entrevista concedida de dentro da Casa de Detenção de Redenção. Ele está com a aparência abatida, olheiras e bastante magro — já perdeu quatro quilos desde que foi detido.
Piadas transcritas como diálogo sério
Segundo Caldas, promotor que pediu sua prisão com base na investigação conduzida pela Polícia Civil, o material contra ele se resume a mensagens e áudios que enviou pelo celular ao seu amigo e sócio, Marcelo Borges, em novembro. Na época, seu sócio já era suspeito por envolvimento em homicídio – o mesmo caso que levou à prisão dos dois.
“O Vargas achava que a acusação contra o seu amigo era tão absurda que fez piada disso, mas sempre em tom jocoso, é evidente que ele não está falando sério”, diz Mendanha, seu advogado.
A reportagem teve acesso às mensagens citadas no pedido de prisão. Nelas, Vargas brinca com o amigo, como quem está conspirando sobre o crime. Suas palavras são intercaladas por risadas e interjeições que indicam humor, como “ham? Haaaam?”. O interlocutor responde com “hahaha” e emojis.
Questionado sobre o fato das mensagens terem sido ditas em tom de piada, o promotor respondeu que as transcrições foram analisadas de modo objetivo. “A defesa é que está trabalhando que seria uma característica dele, o tom jocoso, mas aí é com a defesa, não é com a gente”, diz Caldas. A reportagem pediu entrevista à Polícia Civil, mas foi informada que o delegado responsável está de férias e apenas ele poderia falar sobre o caso. Ele não respondeu aos nossos contatos.
Alguns desses áudios vazaram dias depois da prisão de Vargas. Caíram como uma bomba nas redes sociais de Redenção. Comentários como “só podia ser advogado do MST” se somaram a um vídeo antigo de Vargas brincando em uma festa, como se fosse um acontecimento recente e uma prova do seu escárnio à investigação. Os ataques à sua imagem impactaram em especial a sua família. Sua companheira passou a ter medo de sair com as filhas e ser reconhecida nas ruas da cidade. Ela tem receio de se identificar e também virar alvo do linchamento virtual, por isso seu nome não será publicado.
“Meu companheiro foi preso por causa de uma besteira que ele falou no celular. Uma brincadeira de mau gosto, mas que nada comprova qualquer tipo de envolvimento” disse ela em uma mensagem veiculada em rádio local. “Já pensou se seus áudios fossem transcritos pela polícia? E suas piadas levadas à sério pra te incriminar?”, questiona.
O que dizem os áudios
Não é difícil identificar o tom jocoso na voz de Vargas ouvindo as mensagens que vazaram. Mas, para entender o conteúdo do que ele diz, é preciso ter mais informações sobre o caso.
Os áudios fazem parte de uma conversa sobre o desaparecimento de Cícero José Rodrigues de Sousa, presidente de uma associação de epilepsia e candidato a vereador em Redenção. A tese da polícia e da promotoria é que Marcelo, sócio de Vargas, mandou matar Cícero para ficar com recursos que a associação pleiteava na Justiça. Os recursos eram pagamentos que a prefeitura devia à associação.
Cícero desapareceu no dia 20 de outubro. Um mês depois do desaparecimento, em 24 de novembro, a Justiça bloqueou R$ 270 mil na conta da prefeitura, em resposta a um processo movido pela sua associação. Nessa época, Marcelo passou a ser investigado pela polícia como suspeito de envolvimento no crime. A tese da polícia e da promotoria, que foi divulgada posteriormente, é que Marcelo mandou matar Cícero para ficar com os recursos que a associação poderia receber na Justiça.
O bloqueio de valores na conta da prefeitura foi o principal motivo das mensagens enviadas por Vargas, que não acreditava que seu amigo pudesse ser culpado pelo crime.
Logo que soube do bloqueio, Vargas enviou um áudio ao seu amigo, fazendo piada sobre o que ele deveria falar ao prefeito: “…olha, esse é só o primeiro dos muitos que virão nos próximos anos [referência a outros bloqueios que poderiam ser feitos à pedido da associação de Cícero], mas como a gente não quer te criar problema, a gente sumiu o Cícero, pra resolver isso aqui facilmente”, diz Vargas
Ouça o primeiro áudio *
Ele usa tom irônico do começo ao final da mensagem, rindo ao pronunciar a palavra “facilmente”. Na sequência deste áudio, Marcelo responde com três linhas de “hahaha”.
A transcrição da polícia, porém, apenas registra as palavras, omitindo a informação sobre o tom da voz e as risadas. Sobre este trecho, o pedido de prisão conclui: “indicando ter conhecimento e aderido à conduta criminosa”.
Outro áudio, ainda mais carregado de tom jocoso, também é citado no pedido de prisão.
Vargas fala: “Bom dia, mais novo milionário do pedaço! (…) estou chegando em Belém nos próximos dias, o Marcelo [nome do prefeito] vai tá lá… porra… porra, hein? Podia encontrar ele lá em Belém mesmo. Ham? (risos) Haaam? Falar ‘olha, estou aqui para falar duas coisas: sobre o sequestro do Cícero e o sequestro de valores da conta da prefeitura’”.
Ouça o segundo áudio
Mais uma vez, ele ri enquanto pronuncia as últimas palavras da mensagem. A este áudio, Marcelo responde com um emoji de cachorro dançando. No pedido de prisão, o texto apenas transcreve o conteúdo e conclui: “demonstrando, assim, o envolvimento do investigado com os fatos”.
“Esse caso gerou muita repercussão aqui em Redenção, todo mundo queria saber do paradeiro do Cícero. A investigação foi acelerada para dar uma resposta, para encerrar o caso”, afirma o advogado de Vargas, Marcelo Mendanha.
Sobreviventes da chacina podem ser despejados
Entre outros apoiadores do advogado que a reportagem encontrou na porta da Casa Penal de Redenção na quarta-feira passada (6), estava o líder da associação dos trabalhadores rurais que ocupam a fazenda Santa Lúcia, palco da chacina. “Eu não acredito que ele fez isso porque eu já vi ele recusando dinheiro antes”, afirma Manoel Gomes Pereira. “Uma vez o Vargas me chamou e disse que recebeu uma oferta de propina para a gente sair da área. Iria 300 mil para ele e 2 milhões para os assentados. Antes de eu dizer que não, o Vargas já falou que, se a gente quisesse aceitar, ele preferia sair do caso”.
Com a sua prisão, os assentados estão com medo do que pode acontecer. Eles sempre estiveram vulneráveis a retaliações, já que os policiais civis e militares que executaram os seus amigos e familiares continuam trabalhando, muitos deles em Redenção. “Quando eu entro num mercado na cidade, fico pensando se vai ter alguém me esperando na porta, se vou conseguir chegar vivo em casa com minhas compras”, diz um dos assentados.
“Desde o massacre em 2017, Vargas se destaca com um trabalho brilhante na defesa dessas famílias que pleiteiam o assentamento”, afirma Andréia Silvério, advogada popular atuante na Comissão Pastoral da Terra. “A manutenção da sua prisão é um prejuízo enorme para ele, sua família e para os assentados”.
A prisão, feita justo no momento em que a Justiça concedeu a reintegração de posse, faz os assentados e sobreviventes da chacina reviverem os traumas da violência. O massacre ocorreu justamente em meio ao processo em que a Justiça e a polícia tentavam tirar os ocupantes do local. Após sucessivos despejos, em que casas foram queimadas e famílias removidas à força pela polícia, os ocupantes insistiam em voltar à fazenda. Além da polícia, eles enfrentavam a ameaça de seguranças armados, contratados pelos proprietários, a família Babinski. Foi no meio dessa disputa que ocorreu a chacina.
Hoje, o despejo pode ocorrer a qualquer momento, dependendo apenas da volta das atividades devido à pandemia. Mesmo dentro da prisão, Vargas afirma que vai continuar tentando adiar a reintegração. Ele está em contato com outros advogados e passando informações sobre possíveis recursos.
No início do ano, ao saber que o advogado está preso, um dos sobreviventes da chacina entrou em desespero. Ele andou sozinho, na noite escura, até a casa de um vizinho e perguntou: “Você está me vendo? Eu estou aqui?”. Ao ouvir que sim, ele se acalmou e voltou para sua casa, onde vive sozinho. “É como se eu tivesse morrido na chacina e tudo o que aconteceu desde então fosse um sonho, ou um pesadelo. Eu não sei se isso é vida”.