Por Emir Sader, Brasil 247 –
No inicio quiseram dar a impressão que se tratava da grande maioria do povo se manifestando contra a corrupção do governo, isolando uma presidenta no Palácio, bradando pela sua derrubada. Manifestações que se revelaram de classe média alta e de burguesia, de brancos, ricos, preconceituosos, que colocavam pra fora os piores clichês contra a democracia, contra o povo, contra os direitos dos mais necessitados, contra as organizações populares.
Passaram a dar como fato consumado, nos seus editoriais, que havia uma “voz das ruas”, que pedia o fim dos governos do PT. A forma, os meios, os personagens, ja não interessavam. Avançavam para conseguir o que não tinham conseguido, desde 2002, pelas urnas: tirar o PT do governo, objetivo que unifica a toda a direita brasileira.
Conforme falharam as tentativas que pareciam poder contar com mais evidencias – fraude eleitoral, acusações de corrupção, financiamento indevido de campanha –, as vias de derrubada da Dilma foram se estreitando. Até que desembocaram no que tinham os golpistas: o monopólio da mídia, a maioria no Congresso e o silencio cúmplice do STF, para montar a farsa que deu no golpe, tal qual ele foi possível.
Não era a via que a direita preferia, até porque nesta tem que depender do Temer e do PMDB que, como a própria mídia difundiu, estão profundamente implicados em vários dos casos de corrupção ventilados, muitos deles réus no STF. Mas foi o que restou: montar o circo da votação daquele domingo 17/4, que funcionou para o que queria, criou-se o cenário para a pantomima, mesmo com o desgaste do exibição nacional e internacional do que é o Congresso: a cara do Eduardo Cunha.
O objetivo principal foi obtido: tirar o PT do governo, da forma que fosse, com quem fosse, ao preço que fosse. Aí veio a batalha pelos cargos, mas já no marco da reapropriação do governo pela direita.
O eixo de conteúdo do governo está nas mãos do Henrique Meirelles, via de reimplantação do modelo neoliberal e conduto de relação com o grande empresariado, em primeiro lugar com os banqueiros, que representam a espinha dorsal da economia especulativa que ainda comanda o pais.
Meirelles não deixa ilusões: vem duro ajuste fiscal, com cortes pesados em todas as áreas, especialmente nos recursos para políticas sociais. A obsessão pela desvinculação constitucional dos recursos para educação e saúde nos orçamentos federal, estaduais e municipais, vem em primeiro lugar, para usar os recursos para outras atividades, somando-se ao ajuste das contas publicas. A revisão de todos os programas sociais – no sentido mais amplo da palavra, incluindo os do ja extinto Ministério de Desenvolvimento Agrário e outros que atendem a setores populares – combina uma suposta “moralização” no uso dos recursos públicos, com a exclusão de amplos setores populares dos benefícios e direitos conquistados. A precarização das relações de trabalho, o achatamento do salário mínimo e um conjunto de medidas aprofundam a recessão e o desemprego, acompanham o cruel e violento ajuste anunciado pelo Meirelles, que diz ter apoio da sociedade para elas. O aumento de impostos será uma realidade, apesar dos protestos da Fiesp, assim com a revisão da aposentadoria, apesar do protesto da Força Sindical. Retoma-se um acelerado processo de concentração de renda e de exclusão social.
As reações à formação do governo e ao anúncio das primeiras medidas foram muito fortes. Tanto as reações populares, que intensificaram suas mobilizações conforme a usurpação do governo pelo golpe ganha contornos claramente antissociais e antidemocráticos, como as reações no plano internacional, em que nunca o país teve um governo com imagem tão unanimemente condenada, nem sequer na época da ditadura militar.
Alguns órgãos da mídia vão delimitando distancias em relação ao governo, pela sua composição e por uma parte das suas medidas, políticos e alguns partidos manifestam seu descontentamento, já não há manifestações da direita nas ruas. O movimento pelo golpe foi murchando e o protagonismo fica nas mãos de um governo medíocre, composto por muitos corruptos cujos escândalos vão aparecendo ou reaparecendo, em que varias vozes dizem que “mereciam algo melhor”, como se esse governo não fosse expressão direta das vergonhosas manifestações de rua e da votação daquele 17 de abril na Câmara, e não tivesse no Eduardo Cunha seu maior articulador. É sua expressão mais genuína, apoiada pelos evangélicos fundamentalistas, pelas lobbies no Congresso, pela mídia mais sem pudor, como a Globo, pelos personagens mais grotesco que fizeram parte da pantomima do golpe. Semearam esse golpe e têm ai o governo que podem colher.
Mas não devemos nos iludir que as diferenças e os descontentamentos internos no bloco golpista possam levar a colocar em risco o projeto golpista. Porque as alternativas são de muito risco para todos eles: por uma votação, hoje improvável, no Senado, Dilma retomar a presidência, com o anúncio ja feito de que o Lula seria o coordenador de um novo governo. Ou novas eleições, em que os golpistas estão pior preparados do que nunca, com o esfacelamento definitivo dos tucanos, o novo desgaste da Marina ao apoiar o golpe e nomes inexpressivos e queimados, como o Cristovam, o Alvaro Dias, o Bolsonaro. Querem tratar de evitar uma nova circunstância como a que permitiu a eleição do Lula em 2002, com o alijamento deles do governo por quase 13 anos.
Quem apoia esse governo? Todos os que foram postergados pelos governos do PT, descontentes, como o grande empresariado, em particular os banqueiros, a mídia monopolista privada, os partidos que hoje disputam lugares no governo golpista, o governo dos EUA, e os setores radicalizados à direita da classe media. Todos os que assumiram que tirar o PT do governo é o seu primeiro objetivo, o que os uniu. Os descontentamentos e as diferenças entre eles não são suficientes para que permitam, por si sos, um retorno de um governo que não esteja sob seu controle.
Mas, ao mesmo tempo, o isolamento do governo em relação à população e ao mundo, pode levar à sua crise prematura, pelas fragilidades de quem deveria comandá-lo, da composição que faz dele o pior governo que o país ja conheceu, das medidas duríssimas que anunciam, pelas extraordinárias manifestações de repudio ao golpe ao governo que surgiu dele. Conforme ele se revela como um projeto sem nenhuma ideia-força, sem legitimidade, sem quadros capazes, suas fragilidades lhe tiram precocemente o fôlego para enfrentar situações tão adversas. Sua sobrevivência custará um preço cada mais caro ao pais, mas também às forcas que se jogaram por inteiro na aventura golpista. Abre-se um período de disputa, em novas condições, mas mais aberto do que nunca, cujo futuro depende da capacidade da oposição a esse governo de fazer desembocar as enormes mobilizações populares e o desgaste do governo em uma saída política alternativa.
Foto da capa: Valter Campanato / Agência Brasil