Por Maria Fernanda Ribeiro, compartilhado do Amazônia Real
Relatório mostra que governo Bolsonaro deve ser responsabilizado pela disseminação da Covid-19 entre os povos indígenas. Faltou um plano estruturado, no início da pandemia, com informação de prevenção ao vírus e quarentena, além de testes e EPIs para o pessoal da saúde. (Indígenas foram enterrados em vala comum, em Manaus (Foto de Raphael Alves))
Agentes do governo federal como principais transmissores da Covid-19 nos territórios indígenas, racismo, subnotificação, invisibilidade, flexibilização da legislação ambiental e enfraquecimento das políticas de proteção são algumas das denúncias do relatório Nossa Luta é Pela Vida, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), divulgado nessa quinta-feira (10 de novembro), Dia Internacional dos Direitos Humanos. O documento é explícito: trata-se de uma tragédia sem paralelos causada por negligência e omissão do estado brasileiro na proteção dos territórios indígenas e de suas populações. Foram contabilizados até o momento 888 óbitos, 41.250 casos confirmados e 161 povos infectados.
O documento de 110 páginas é um panorama das diferentes dimensões de como os povos originários foram atingidos em oito meses da doença no Brasil. A Apib espera mobilizar a atenção da sociedade civil e gerar pressão nacional e internacional contra a política do governo Jair Bolsonaro.
A contaminação entre os indígenas começou com um agente que deveria protegê-los. Um médico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) retornou do período de férias direto para o seu posto de trabalho no município de Santo Antônio do Içá, no Amazonas. A pandemia já tinha chegado ao Brasil, mas ele não fez quarentena, nem teste para o novo coronavírus. Porém, por estar infectado, contaminou uma agente de saúde indígena do povo Kokama, de 20 anos, o que desencadeou uma onda de contaminação na região do Alto Rio Solimões. “Esse caso revela um padrão que irá persistir sobre a entrada do vírus em muitos territórios, evidenciando a política anti-indigenista do governo Bolsonaro”, aponta trecho do relatório.
Os Kokama são o segundo povo com maior número de mortes por Covid-19 entre indígenas no Brasil até o fim de outubro, segundo dados coletados pela Apib e pelo governo federal. De acordo com os dados das organizações do povo Kokama, são 58 indígenas mortos e milhares de contaminados.
No Vale do Javari, equipes da Sesai também foram responsáveis pela contaminação. A região possui o maior número de indígenas em isolamento voluntário e de recente contato do mundo. Na Terra Indígena Parque de Tumucumaqui, na divisa entre o Pará e o Amapá, na remota fronteira com o Suriname, a Apib aponta o Exército como agente de transmissão do vírus para um dos territórios mais isolados e de difícil acesso logístico do país. Na TI Mamoadate, na região do Alto Rio Purus, no Acre, a equipe de saúde do governo teria levado o vírus para o território com indígenas em isolamento voluntário e de recente contato. Os exemplos mostram a fragilidade da estruturação das medidas sanitárias.
Algumas ações realizadas dentro dos territórios indígenas pelo governo brasileiro trouxeram reflexos negativos durante a pandemia. “O Exército levou ajuda humanitária, isso é bem verdade, mas junto também levou o vírus”, aponta Dinamam Tuxa, coordenador da Apib. “Queremos mostrar com esse relatório que não houve um plano emergencial e que não houve uma política pública de combate ao coronavírus para os povos indígenas por parte do governo. Pelo contrário, o que houve foram ações que insuflaram as invasões em terras indígenas e que aumentaram a taxa de contaminação.”
O relatório informa ainda que ficou evidente a precariedade das condições de trabalho dos agentes de saúde indígena pela quantidade de casos confirmados e mortes desses profissionais, de norte a sul do país. A Apib teria recebido denúncias de funcionários indígenas que foram obrigados a trabalhar, mesmo com sintomas da Covid-19.
Para Dinamam, o governo foi omisso e negligente ao não enfrentar o aumento das invasões em terras indígenas e, consequentemente, das contaminações. Durante a pandemia, houve aumento das queimadas e do avanço do agronegócio, pois os madeireiros e garimpeiros não trabalharam de casa e muito menos cumpriram quarentena. Além disso, os invasores aproveitaram do afrouxamento da fiscalização para se apropriarem das terras públicas. Uma verdadeira catástrofe, segundo Dinamam.
A Apib aponta ainda que de março a outubro foram registradas mais de 200 violações de direitos humanos fundamentais cometidas contra os povos indígenas, uma situação considerada alarmante. “Apesar de todos os ataques e invasões, decidimos não morrer, mas lutar incansavelmente em defesa da vida”, afirma Sonia Guajarara, coordenadora da Apib. “Foram muitas as batalhas, nossas vidas foram constantemente atacadas, nossos territórios foram invadidos e nossa resistência se fez muito maior. Seguimos ainda nessa luta, com resistência e resiliência, fortalecendo nossas práticas e conhecimentos tradicionais.”
De acordo com a liderança Célia Xakriaba, as organizações indígenas não querem e nunca quiseram cumprir os papéis que são do Estado, mas precisou se articular e assumir algumas frentes para evitar “mais morte e mais dor.”
O cruzamento realizado pela Apib, com dados oficiais sobre a doença e informações coletadas pelo movimento indígena, encontrou inconsistências que comprovam a fragilidade das notificações oficiais e a defasagem dos números divulgados pela Sesai e que desde o início tem sido motivo de críticas por parte dos movimentos indígenas por não incluir os que vivem em contexto urbano.
Foram encontrados 136 casos de indígenas notificados no sistema Siveg-Gripe, plataforma do Ministério da Saúde, sem correspondência na base da Fundação Nacional do Índio (Funai). Houve óbitos entre indígenas identificados como sendo de um povo, mas que são de outro. Um Tikuna, por exemplo, foi registrado como Kokama, um Macuxi como Taurepang, um Palikur como Karipuna e um Munduruku como Borari.
As inconsistências dos dados, de acordo com a Apib, dificultam as adoções de medidas de prevenção e enfrentamento para o avanço da doença. As investigações feitas pelo Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena apontam que os casos entre indígenas devem ser maiores do que aqueles que a própria instituição consegue monitorar e isso acontece por dois fatores: o racismo, em que muitos não estão sendo registrados como indígenas e sim como pessoas pardas ou “brancas”. A consequente é uma subnotificação dos casos. Leia reportagem sobre o tema aqui.
Para analisar os dados da Sesai, do Ministério da Saúde, a Apib teve de solicitar essas informações por meio do Supremo Tribunal Federal (STF). Foi invocada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, um tipo de ação que busca evitar ou reparar danos a algum princípio básico da Constituição. A Apib informou que as informações levantadas pela Sesai, que são disponibilizadas no site oficial, apresentam pouco detalhamento que permita uma análise sobre quais povos estão sendo impactados.
“A subnotificação foi uma política de apagamento, de racismo que foi inserido no DNA da política estatal, que nega a presença indígena em algumas partes do país, nega que haja mais indígenas contaminados, tentam varrer isso pra debaixo do tapete, numa tentativa de esconder a verdadeira realidade dos povos indígenas, inclusive esconder da comunidade internacional para não sofrer pressões. Um governo que Inclusive prejudicou a ajuda humanitária, dificultando o trabalho de parceiros”, afirma Dinamam. “Nosso sentimento é de insegurança. Insegurança pelas nossas vidas.”
Caso Ana Beatriz
Durante o evento online de divulgação do relatório Nossa Luta é Pela Vida, Sonia Guajajara comentou a morte da menina Sateré-Mawé Ana Beatriz Rayol de Souza, de 5 anos. Ela morreu após ser violentada sexualmente, dentro da Terra Indígena Andirá Marau, no município de Barreirinha, na região do Baixo Rio Amazonas.
“Não podemos mais fechar os olhos para isso. Não podemos mais aceitar violências e fatos como esse. Não podemos mais perder nossas crianças, nossa juventude e nossas mulheres para essa violência, para esse estupro, que sempre aconteceu desde o descobrimento do Brasil e continua acontecendo até hoje”, protestou Sonia.
A cantora e jornalista Djuena Tikuna, que encerrou as falas do evento, também comentou o caso. “Quero aqui, nessa data, em que se comemora o Dia Internacional dos Direitos Humanos, deixar o meu repúdio contra todo tipo de violência que acontece com nossas crianças que são violentadas psicologicamente e fisicamente”, afirmou. “Por Ana Beatriz e por todas as crianças indígenas e não-indígenas violentadas pelo machismo, a nossa luta continua.”
Maria Fernanda Ribeiro é jornalista multimídia com foco nos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Documento e compartilho histórias em reportagens, crônicas e vídeos. Viajei dois anos pela floresta amazônica munida apenas da minha mochila, uma câmera e um gravador para conhecer quem são as pessoas que habitam a floresta. Rodei por oito estados (só faltou o Tocantins entre os que compõe a Amazônia Legal), de barco, de carro e de avião. Isso foi entre 2016 e 2018 e, de lá para cá, reportar as vidas, os conflitos e os movimentos que permeiam as histórias dessas pessoas é o meu caminhar como jornalista. (mariafernanda@mazoniareal.com.br)