Por Eliane Oliveira, da Revista Fórum –
Não é que agora tudo seja racismo, simplesmente porque nunca deixou de ser. Agora apontamos o preconceito e a violência que nos atinge há tempos, não seremos mais silenciadas. Não somos fiscais do politicamente correto, como alguns desavisados gostam de nos enquadrar. Pelo contrario, temos é consciência da nossa historia, das nossas dores, de nossas lutas
Quando alguém me vem com essa indagação, respondo já de pronto: não, agora não tem racismo em tudo! Porque não é de agora que o racismo atinge a nós negras e negros. Desde o tempo em que nossos ancestrais vieram escravizados para o Brasil que sofremos com ele. O que tem do novo na situação é que cansamos de ser silenciados.
Essa voz que o povo preto conquistou nos últimos tempos vai escancarando, aos poucos, a cara do Brasil que foi mascarada durante anos. O país da mistura de raças, da multiplicidade cultural, que adora samba e carnaval, onde impera a democracia racial, esse país tropical abençoado por deus jamais aceitaria carregar o peso de ser considerado racista. Não por quem oprime e reproduz o racismo, mas para nós essa falácia só existiu nos belos textos acadêmicos e esse peso nós carregamos em nosso dia a dia o tempo todo.
Para quem é preto nesse país, o branqueamento e anulação da identidade são históricos. Para além da apropriação dos símbolos culturais ainda tentam fazer crer que ser chamada de “negra” é uma ofensa. Referem-se a nós como “pessoas de cor”, “morenas”, “mais escurinhas” e o pior de todos para nós mulheres, nos chamam de “mulatas”. Tudo em nome de uma falsa respeitabilidade à pessoa. Mesmo quando apontamos que preferimos ser identificadas como negras, pois não há problema nenhum em relação a isso, tentam se justificar, como se eles estivessem certos e nós as erradas :“ah, mas você nem é tão preta assim!”.
Vivemos numa sociedade racista sim, e não é de agora. Somos vítimas de forma escancarada, não existe essa de racismo velado, como muitos dizem por aí. Aqui a coisa acontece a olho nu, embaixo do sol do meio dia. Por isso não nos vemos na maioria dos comerciais, nem nas produções da televisão (quando muito, de forma estereotipada), não encontramos produtos específicos para cuidar da nossa pele nem dos nossos cabelos. Somos as principais vítimas da violência do Estado, as que menos ganham. Não, o racismo não é de hoje, chegamos a tal ponto que a morte do nosso povo virou apenas dados estatísticos, não causa comoção.
A falta de representatividade, que serve para empoderar outras pessoas pretas, quando apontada como racismo é justificada com o discurso “de crescer e conquistar por mérito”, em conjunto com o apontamento de meia dúzia de negros (dos quais conseguem lembrar) que são destaques nas áreas em que atuam. Fazem isso mesmo sem conhecer o histórico de lutas das pessoas em questão e o quanto essa representatividade ainda é baixa num país de maioria negra.
Quando questionam minha militância dizendo que não existem raças, apenas a humana, devolvo perguntando que humanidade é essa que não enxerga a profunda desigualdade que atinge a maioria dos negros desse país. O mais interessante no atual momento que vivemos é perceber que os mesmos que nos acusam de ver racismo em tudo são capazes de escrever belos textos escandalizados quando um famoso, vítima do racismo, escancara seu caso na mídia.
Vira campanha nas redes sociais, ganha comoção nacional. Mas esses mesmos que compartilham e curtem essas ações são aqueles que pregam aos quatro ventos que são a favor da redução da maioridade penal, que cotas são coisas de “preto vitimista”, acham que as religiões de matriz africana são para fazer “feitiço”, que mulheres pretas são fogosas e para curtição. Ou seja, apenas vão na onda, são os “anti-racismo modinhas”, não buscam e não têm interesse em se informar sobre o que é nem como não reproduzir o racismo.
Não é que agora tudo seja racismo, simplesmente porque nunca deixou de ser. Agora apontamos o preconceito e a violência que nos atinge há tempos, não seremos mais silenciadas. Não somos fiscais do politicamente correto, como alguns desavisados gostam de nos enquadrar. Pelo contrario, temos é consciência da nossa historia, das nossas dores, de nossas lutas. Nossas pautas são extensas, nossas conquistas apenas começaram.
O cabresto da dominação não nos cabe. Não irão nos esconder no quartinho dos fundos, como um móvel que não querem mais. Nem nos destinar a outros espaços que não sejam os escolhidos por nós mesmos. Nosso papel na sociedade agora terá outro traçado, que será determinado pela cor preta de nossa pele, pelas nossas vivências e pela nossa união na luta por outros direitos. Não aceitamos mais sermos invisibilizadas.
Enquanto as práticas racistas vigorarem, para os opressores continuaremos sendo aquelas que veem racismo em tudo, porque para quem é vitima delas não existe um único dia de trégua. Pois, se baixarmos a guarda o que nos restará serão apenas lágrimas de sofrimento, preferimos ficar com as de conquistas por espaços e pelas batalhas vencidas.
(*) Eliane Oliveira é mestre em Ciências Sociais e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (NEIAB) da Universidade Estadual de Maringá/PR (UEM), além de professora da Sociologia da rede pública e particular e feminista negra