Alcir Santos, juiz de direito aposentado
Silêncio absoluto. Salão lotado. De pé, acotovelando-se, o público expectante. Jornalistas, religiosos, camponeses, familiares, curiosos – enfim, toda a fauna humana que costuma se fazer presente em júris de grande repercussão. Minha voz, firme e pausada, sobressai no silêncio. Para cada um dos seis acusados levados a julgamento enuncio o resultado do julgamento. À medida em que as absolvições são anunciadas, sobe do público o murmúrio de contentamento, entremeado pela insatisfação de uns poucos. Encerro a leitura da sentença e me despeço. Apanho o material usado e me encaminho para o gabinete.
Enquanto vou andando, o coro dissonante se eleva. De soslaio acompanho os abraços e as expressões de júbilo. Os advogados são cercados e abraçados. Lembro Mário Alberto com sua máxima: “Juiz presidente de tribunal de júri, médico ginecologista e porteiro de cabaré têm em comum o fato de trabalharem onde os outros se divertem…”
- Doutor! Um instante!
Volto-me e me deparo com o mais velho de todos os acusados. Analiso-o cuidadosamente. É o líder comunitário. Cabelos lisos e brancos, rosto duramente marcado pelas rugas e pelo efeito do sol inclemente, os olhos claros, altaneiros e tranqüilos, procuram os meus. A despeito da idade, quase setenta anos, é, ainda, um homem muito forte. É a primeira vez que nos falamos, possivelmente a última. Sua presença impressiona, e não é pelo porte físico. Há em suas postura uma certa imponência natural, um quê de autoridade. Nossos olhares se cruzam:
- Doutor, o júri terminou. Fomos absolvidos. Agora eu posso voltar para o meu pedaço de terra com a cabeça erguida, certo de que não devo nada?
- Sim, com certeza. Finalmente, depois de dez anos, o processo chegou ao fim. É verdade que ainda cabe recurso. Mas não creio que o resultado possa ser alterado.
- Então, Doutor, muito obrigado.
Estendo a mão e recebo o aperto forte de uma manopla calejada e dura como se fosse um casco. Incontinenti, vira-se e sai andando firme e altivo, espécime de sertanejo que não se dobra e não transige. Com ele carrega a resposta procurada arduamente durante o inquérito, no próprio processo e por todos os anos que se foram.
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Início da década de oitenta. Seca brava. Difícil encontrar água até para preparar comida. Plantações esturricando e animais morrendo. A pouca água do Salitre sumindo, levando ao desespero os ribeirinhos situados a jusante, todos eles camponeses dedicados a agricultura de subsistência e ao criatório, em regime extensivo, de animais de pequeno porte, bodes cabras e galinhas.
A montante, os produtores voltados para a agricultura de exportação com suas potentes bombas a drenar a água do rio moribundo. Aí está formado o caldo em fermentação. A água que falta aos camponeses para atender necessidades básicas é a mesma que mantém o verde viçoso da agricultura irrigada.
É possível pensar num acordo, numa utilização rotativa da água. Ocorre que as partes já não se entendem e as autoridades se omitem, esperando que as coisas se resolvam por si mesmas. A velhíssima política do “empurrar com a barriga e deixar estar para ver como fica”.
Os camponeses reagem. Desligam uma chave-fusível responsável pela distribuição de energia elétrica e impedem os prepostos da empresa encarregada de efetuarem o conserto. Ali se postam, em guarda permanente. É importante impedir a alimentação das bombas. Com elas fora de funcionamento há a possibilidade de sobrar alguma água para eles.
Escolhem três representantes e os enviam até a cidade onde, após tentativas frustradas de falar com autoridades, conseguem espaço em uma rádio local. Pedem encarecidamente intervenção de quem de direito sob pena de uma desgraça acontecer. O silêncio é a única resposta.
Alertados sobre a paralisação das suas bombas, os fazendeiros decidem agir. Enquanto os representantes dos camponeses aguardam, na cidade, a providência de alguma autoridade, dois do lado dos produtores, armados de revólveres, tomam uma caminhonete e se dirigem ao ponto onde está o fusível desligado, buscando restabelecer a corrente. Arrogantes, vão chegando, saltando do carro, e, aos gritos, proferindo impropérios e ofensas, desafiando os camponeses.
Aos poucos a comunidade, que vinha montando guarda ao fusível desligado, se aproxima e cerca os fazendeiros. O grupo vai se fechando e o murmúrio crescendo em burburinho de ódio e revolta. Um dos fazendeiros, revólver apontado em todas as direções, sempre gritando agressões e ofensas, resolve afastar a massa e deflagra o primeiro tiro. É a senha. Irrompe o tiroteio.
O fazendeiro, ainda incólume, continua disparando sua arma, enquanto se abriga atrás de uma outra caminhonete que se encontra no local. Acabada a munição, queda-se desarvorado atrás do carro, perdido e desamparado, sem ter como escapar, cercado pela turba enfurecida. No desespero tenta fugir contornando o carro em busca de uma saída. Súbito depara-se com um dos camponeses, de arma em punho. Um único disparo à queima-roupa. Ali mesmo tomba, morto.
O outro corre para o carro e entra na cabina, sempre seguido dos camponeses. Tenta por o veículo em marcha. O motor afoga. Tenta de novo. Repetidas vezes aciona o arranque, sem qualquer sucesso. A turba envolve o carro. A porta é aberta e o motorista arrancado. Ânimos exaltados, a massa ensandecida e descontrolada inicia o espancamento.
De súbito a lâmina de um facão rebrilha ao sol. O fazendeiro tomba com a cabeça separada do corpo. A massa reflui. Dentro em pouco, somente os dois cadáveres permanecem no local, vestígios mudos da chacina. Ainda um último sinal de vida: um empregado dos mortos que viera na carroceria e ali ficara deitado ergue-se, circunvaga o olhar em volta e foge. Fora visto pelos camponeses, com toda certeza, mas permanecera intato como se numa demonstração inequívoca das reais intenções daquele grupo de pessoas desesperadas.
O fato repercute com intensidade por toda a região, se espraia pelo Estado e transcende as fronteiras do País. A opinião pública se divide. Os segmentos mais sintonizados com as questões sociais tomam o partido dos camponeses, sem esquecer de destacar a exclusão de ilicitude do estado de necessidade. Afinal de contas naquele local, num dado momento, confrontaram-se, de um lado, pessoas desesperadas pela falta de água e, de outro, o interesse econômico, embutido no uso da agricultura irrigada voltada para exportação.
Os conservadores e os membros das oligarquias regionais traduzem o fato como mais uma agressão comunista contra a propriedade privada, a família e o Estado. A imprensa, a depender da orientação de cada órgão, reproduz, a seu modo, as manifestações de apoio e condenação que emanam da sociedade.
Entra em cena a polícia. Os líderes da comunidade são, de logo, presos e conduzidos para a cidade. Ali serão indiciados no inquérito policial e conhecerão as dores do inferno. Um oficial da PM é deslocado da capital como delegado especial. Vai conduzir, em nome da ordem pública, o costumeiro espetáculo de sandices e torturas. As mesmas autoridades que se omitiram quando procuradas pelos camponeses agora se fazem presentes a exigir a rápida conclusão do inquérito e o indiciamento de todos os acusados. De esquecidos produtores rurais os presos são elevados à condição de facínoras.
Os mortos, antes temidos na cidade pela violência com que costumavam se comportar, passam à condição de mártires. A questão principal, a briga pela água, não é sequer tocada. Não interessa discutir problema tão delicado que, com certeza, incomoda e maltrata. A regra é transformar o problema social em simples caso de polícia.
A igreja católica se posiciona ao lado dos presos.
Advogados são acionados e, aos poucos, as condições carcerárias vão melhorando. A brutalidade dos torturadores não é capaz de gerar provas consistentes. Personalidades eclesiásticas do porte do Cardeal Arns e do Padre Hélder, no plano interno, aliam-se a um sem número de figuras no plano internacional.
De todos os lados chegam telefonemas e telegramas repudiando a tortura e pedindo condições para que o inquérito possa se desenvolver em condições de permitir aos réus condições mínimas de tratamento humanitário. Não poucas vezes os interrogatórios são interrompidos para que o delegado vá ao telefone dar explicações e prestar esclarecimentos a algum prelado ou outra personalidade interessada na causa.
Sob o aspecto técnico o inquérito é um desastre. Prova definitiva de que a violência e a brutalidade não são capazes de produzir outra coisa que não as marcas, deixadas nos corpos e nas almas. Mais nada. Um facão é apreendido e encaminhado ao laboratório de polícia técnica. Era a arma usada na decapitação. Meses depois retorna com o laudo conclusivo: não apresenta qualquer vestígio de sangue. Não é a arma do crime.
A prova testemunhal também não conduz a nada. As testemunhas arroladas são unânimes em afirmar que não estavam no local e tudo que sabem é por ouvir dizer. Os acusados, por seu turno, também são uníssonos em negar a autoria. Nenhum deles se preocupa em defender os outros. Esta não é a estratégia traçada. Limitam-se a se defender, cada um por si.
Curiosamente a alegação é a mesma: não se encontrava no local do crime. Toda a brutalidade da tortura não é capaz de conseguir a confissão de qualquer um deles. Dois apresentam um álibi indestrutível: no momento dos crimes estavam na cidade, na estação de rádio, falando e pedindo providências das autoridades locais. O inquisidor não levou em conta o álibi. Conclui o inquérito indiciando a todos.
Na justiça o processo também não teve melhor sorte. O pauperismo do inquérito se projetou nos autos. Arrastou-se durante anos sem que avançasse um milímetro. Um único acusado parecia apresentar algum grau de culpa: aquele que fora apontado como autor do disparo que causara a morte da primeira vítima. Se evadiu do distrito desde o dia dos fatos e nunca mais se soube dele. Quase dez anos se passaram. Instrução concluída. Processo paralisado à espera de alguém que o ultimasse levando-o a julgamento pelo Tribunal do Júri.
Na condição de substituto, assumo a Vara Crime. Dias depois, sou procurado por um dos acusados. Um dos que se encontravam fazendo declarações na rádio no momento dos fatos. É cabo da PM e está, pelo fato de responder a processo, impedido de avançar na profissão e galgar patente mais elevada. Ser levado a julgamento é uma necessidade inadiável. Além disso, falando em nome dos outros, quer acertar suas contas com a sociedade. Não suporta a espera interminável.
Prometo estudar os autos e ver o que é possível fazer. Com o processo em mãos, passo à análise de todos os fatos. Decido dar andamento ao feito. Materialidade indiscutível. Autoria, totalmente questionável. Pronunciei-os todos, transferindo para os representantes da sociedade a responsabilidade de decidir, em plenário.
Publicada a pronúncia, agitam-se os direta e indiretamente interessados. Uns antevendo dificuldades para realização do julgamento e achando conveniente deixar as coisas no pé em que se encontravam. Outros mais assustados chegam a prever distúrbios e até mesmo atentados. Em maioria os que apoiam e aplaudem a iniciativa. De minha parte a decisão está tomada: o julgamento será realizado. Cumpridos os trâmites e prazos processuais, designo data para julgamento.
Salão lotado. Curiosamente mais jornalistas estrangeiros que locais. Muitos religiosos presentes. Em volta do fórum, dentro e fora do salão, o forte aparato policial que a PM entendeu necessário. A tensão reinante é perceptível, quase palpável. O líder dos advogados de defesa, criminalista conhecido e respeitado, me confessa seu nervosismo e apreensão. Postura praticamente idêntica a do assistente de acusação, também experiente e muito conhecido em toda a região.
Iniciamos os trabalhos. Representando o Ministério Público o Dr. José da Mata, responsável pela nota marcante do julgamento. Usa da palavra por pouquíssimo tempo. O suficiente para ministrar primorosa aula sobre as funções constitucionais do Ministério Público e concluir por pedir a absolvição dos dois acusados que, comprovadamente, se encontravam ausentes do distrito da culpa no momento do fato. Para os demais acusados, afirma não estar convencido da culpabilidade e por isso se abstem de fazer qualquer pronunciamento.
Encerra sua fala e volta para o seu lugar. Há um momento de silêncio total. Um clima de perplexidade se instala. Em seguida, sobe o burburinho e vozes se elevam. Nada que não se consiga controlar.
Assume a tribuna o assistente de acusação e, por todo o restante do seu tempo, sustenta o pedido de condenação. Sofre, é verdade, pela atitude do Promotor. A defesa, num dos grandes momentos do seu líder, sustenta a negativa de autoria, para todos os acusados. Atendendo ponderações do assistente, o Promotor vai à réplica, mas deixa todo o tempo disponível para o advogado contratado fazer o seu trabalho.
Depois, na sala secreta a tensão é incrível. Os jurados, compenetrados e cônscios da grande responsabilidade, se entreolham, calados. Embora o julgamento possa ser decidido na resposta ao primeiro quesito, é preciso muito cuidado para prevenir qualquer nulidade. Sendo duas vítimas e seis acusados, há que se fazer doze julgamentos. A cada julgamento o clima vai desanuviando. Julgamento concluído, peço licença aos presentes e, em pouco tempo, lavro a sentença.
Adentro o salão do júri. Assumo a tribuna e passo a publicar a sentença…
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Enquanto o velho se afasta permaneço parado, acompanhando com os olhos o seu caminhar seguro rasgando a multidão, entre cumprimentos. As pessoas se afastam e ele avança em direção à saída. As perguntas estalam dentro de mim: Teria ele, de fato, decapitado o fazendeiro? Como fizeram para trocar os facões e enganar a polícia? Quem, a partir do primeiro momento, traçou a linha de defesa da negativa de autoria?
Perguntas, perguntas e perguntas. E as respostas somem na multidão.