Ainda a anistia

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No embalo de Ainda Estou Aqui, vencedor do Oscar, o STF dá sinais de que pode mudar de opinião sobre a revisão da Lei da Anistia, barrada há quinze anos

Por Carolina Brígido, compartilhado de Piauí




Victoria Grabois cresceu numa família comunista. Seu pai, Maurício, filho de judeus russos que imigraram para o Brasil, participou da intentona de 1935, foi preso pela polícia de Getúlio Vargas e, dez anos depois, se elegeu deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) tendo como companheiro de chapa Luís Carlos Prestes. Sua mãe, Alzira, foi uma destacada militante do Partidão que, com Maurício, deixou a legenda em 1962 para fundar o PCdoB.

Quando veio o golpe de 1964, o novo partido rachou entre os que defendiam a luta armada e os que pregavam a via institucional para derrubar os militares. Os Grabois estavam entre os primeiros. Maurício e o filho André se mudaram para a região do Araguaia, onde um núcleo do PCdoB começava a se instalar. Gilberto Olímpio Maria, marido de Victoria e militante do partido, foi junto.

O foco de guerrilha durou poucos anos, reprimido duramente pela ditadura. Os homens da família Grabois foram dizimados. André, de 27 anos, morreu a tiros em outubro de 1973, alvo de uma emboscada do Exército. Maurício e o genro Gilberto foram assassinados dois meses depois, no dia de Natal, quando militares invadiram seu acampamento. Os corpos nunca foram encontrados.

Victoria e a mãe tentaram, durante décadas, encontrar as ossadas de seus familiares e identificar os responsáveis pelos assassinatos. Alzira morreu em 1998 sem que nenhuma das duas coisas tivesse acontecido. Só em 2009 o Ministério Público Federal passou a investigar a morte de André Grabois e de seus três companheiros, João Gualberto Calatroni, Antônio Alfredo de Lima e Divino Ferreira de Sousa. Com base em documentos das Forças Armadas e depoimentos de testemunhas, os promotores concluíram que os responsáveis pela matança foram dois tenentes-coronéis do Exército que atuaram no Araguaia: Lício Augusto Ribeiro Maciel e Sebastião Curió Rodrigues de Moura. 

Em 2012, os dois tenentes foram denunciados pelo sequestro dos guerrilheiros. Três anos depois, foram denunciados por ocultação de cadáver; Maciel, além disso, foi denunciado por homicídio qualificado. Os assassinatos, segundo o Ministério Público, foram consequência da Operação Marajoara, a derradeira investida das Forças Armadas contra a guerrilha. “Nessa etapa, houve o deliberado e definitivo abandono do sistema normativo vigente, decidindo-se claramente pela adoção sistemática de medidas ilegais que visavam, notadamente, o desaparecimento forçado dos opositores (sequestros e homicídios seguidos de ocultação de cadáveres)”, diz a denúncia de 2012.

A Justiça não aceitou as denúncias de homicídio qualificado e ocultação de cadáver, sob o argumento de que a Lei da Anistia, aprovada em 1979, impedia que militares fossem processados por esses crimes. O Ministério Público recorreu, e em julho do ano passado o caso foi parar no Supremo Tribunal Federal. Sorteado relator, o ministro Flávio Dino concordou com a tese dos promotores de que ocultação de cadáver deve ser considerada um crime permanente, algo que continua sendo praticado contra as vítimas até hoje e que, portanto, ultrapassa o limite temporal estabelecido pela Lei da Anistia.

Amargo para as Forças Armadas, o voto de Dino foi publicado em dezembro, dias depois da divulgação do relatório da Polícia Federal que indiciou Jair Bolsonaro e dezenas de militares por tentativa de golpe de Estado. Embalado pelo zeitgeist, o ministro citou o filme Ainda estou aqui. Escreveu que a história de Rubens Paiva, “cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos”. 

A decisão de Dino abriu a porteira para uma série de outras decisões que indicam que, depois de ter impedido a revisão da Lei da Anistia em 2010, o Supremo Tribunal Federal está finalmente pronto para mudar de opinião.

Vencedor no último domingo do Oscar de melhor filme internacional  – antes, do Globo de Ouro de melhor atriz de drama para Fernanda Torres, de melhor roteiro no Festival de Veneza, entre outros prêmios  –, Ainda Estou Aqui deu uma nova luz à discussão. A trajetória de Eunice Paiva, que se vê sozinha para cuidar dos cinco filhos depois do assassinato do marido Rubens Paiva pela ditadura militar, já atraiu mais de 5,2 milhões de pessoas ao cinema.

“Isso não é justiça, é o mínimo”, diz Victoria Grabois, hoje com 81 anos. “É difícil a gente se vangloriar, são migalhas.” Desde a redemocratização, quando ajudou a fundar o grupo Tortura Nunca Mais, Victoria milita pela reparação às vítimas da ditadura e o esclarecimento dos crimes cometidos pelos militares. As vitórias foram poucas, o que explica o ceticismo. A ditadura, segundo os dados da Comissão Nacional da Verdade, deixou 434 mortos e desaparecidos. Nenhum militar foi condenado até hoje, graças sobretudo à Lei da Anistia.

Há quinze anos, a lei entrou na pauta do Supremo, a partir de uma ação ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Presidida por Cezar Britto, advogado especializado na defesa dos direitos humanos e inclusão social, a OAB pediu que o tribunal anulasse o perdão concedido a policiais e militares acusados de tortura. Alegou, na ação, que aplicar a Lei da Anistia a casos de violência extrema como tortura, desaparecimento forçado e homicídio é algo que “viola frontalmente diversos preceitos fundamentais da Constituição”.

O Supremo, contudo, chegou a conclusão diferente e negou o pedido por 7 votos a 2 (votaram a favor Ricardo Lewandowski e Ayres Britto, tio do então presidente da OAB). Seguindo a tese de Eros Grau, a maioria dos ministros defendeu que a Lei da Anistia havia sido fundamental para selar a paz no Brasil e estabelecer a democracia. Não deveria, portanto, ser revisada. “Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos é capaz de sobreviver”, afirmou, com pompa, o então presidente do STF, Cezar Peluso.

Derrotada, a OAB apresentou embargos de declaração, um recurso adotado quando se quer esclarecer pontos de uma decisão. O pedido entrou na gaveta de Dias Toffoli para nunca mais sair. Em 2015, Marcus Vinicius Furtado Coelho, que na época presidia a OAB, pediu ao tribunal “o julgamento dos embargos de declaração pendentes de análise, com a maior brevidade possível”. Em vão. No ano anterior, o Psol havia protocolado no Supremo uma ação com tese similar, argumentando que desaparecimentos forçados eram crimes continuados e, por isso, não deveriam ser contemplados pela Lei da Anistia. A Procuradoria-Geral da República concordou com a tese do partido, mas não adiantou. Também essa ação repousa, desde então, no gabinete de Toffoli, ministro que, à frente do tribunal em 2018, se mostrou desconfortável em tratar o golpe de 1964 como um golpe. “Me refiro a movimento de 1964.”

A nova composição do tribunal e a conjuntura política, contudo, abriram uma brecha para que o assunto volte a ser debatido. Encabeçada por Dino, uma ala do STF acredita que o atual momento seja ideal para pautar a revisão da Lei da Anistia. Além da comoção causada pelo filme de Walter Salles, pesa nesse cálculo a denúncia contra Bolsonaro e seus aliados, que será julgada pelo tribunal. Na leitura desses ministros, definir agora que nem todo crime é passível de anistia seria um recado contundente aos envolvidos no golpe.

No fim do ano passado, o Supremo deixou claro que pretende reservar um tratamento duro aos militares golpistas. Foram presos preventivamente os generais Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa de Jair Bolsonaro, e Mário Fernandes, ambos suspeitos de tramarem o golpe de Estado em 2022 e, depois, de tentarem obstruir as investigações da Polícia Federal. Os dois constam da lista de denunciados pelo procurador-geral Paulo Gonet.

O gesto de Dino, em dezembro, foi seguido por outros ministros. Em fevereiro, o plenário concordou que o processo contra Lício Maciel, uma vez julgado, terá repercussão geral. Ou seja, caso os ministros entendam que o desaparecimento forçado é um crime continuado, não protegido pela Lei da Anistia, o mesmo entendimento será aplicado a todos os processos semelhantes. A piauí perguntou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) quantas ações desse tipo estão em curso no país, mas o órgão disse que não dispõe desses dados.

O julgamento do caso Lício Maciel não tem data marcada para acontecer. No tribunal, comenta-se que ele deve ser julgado junto com os processos da OAB e do Psol, engavetados por Toffoli. O ministro não descarta promover uma audiência pública para munir o tribunal com argumentos para a votação.

A esse processo, somam-se outros. Também em fevereiro, o ministro Edson Fachin destravou duas ações que pedem a punição de agentes do Estado por crimes cometidos na ditadura. Uma delas tem como alvo o delegado Aparecido Laertes Calandra, denunciado pela prisão, tortura e assassinato, em 1972, de Carlos Nicolau Danielli, militante sindical do PCB. A denúncia original também incluía o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e o delegado Dirceu Gravina. Como os dois morreram, no entanto, apenas Calandra segue no processo.

O outro processo reaberto por Fachin trata da morte do operário e militante Joaquim Alencar Seixas, em 1971. Dos cinco denunciados, só um continua vivo: o médico Pérsio José Ribeiro Carneiro, acusado de inserir informação falsa no laudo do exame de corpo de delito para esconder que Seixas fora assassinado.

Poucos dias depois, foi a vez de Alexandre de Moraes. O ministro reabriu três processos dos quais é relator, entre eles o que trata do assassinato de Rubens Paiva. O processo chegou ao STF em 2021, depois que o Ministério Público Federal recorreu de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que suspendeu a ação penal. Os ministros do STJ decidiram que a Lei da Anistia impedia a condenação dos agentes responsáveis pelo desaparecimento de Paiva. Agora, caberá ao Supremo avaliar a ação e, seja qual for a conclusão tirada, ela terá repercussão geral, como no caso que trata do assassinato de André Grabois.

Os outros dois processos reabertos por Moraes dizem respeito a Mário Alves e Helber Goulart. Integrante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Alves foi preso em 1970 e é considerado até hoje um desaparecido político. Goulart, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi preso em 1973 e morreu sob tortura. Seus restos mortais só foram encontrados em 1990, enterrados em uma vala comum do Cemitério Dom Bosco, em São Paulo.

Os ministros do STF evitam dar declarações públicas sobre a Lei da Anistia. No entanto, o presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso, tem dado sinais de que também considera apropriado debater o tema. De maneira simbólica, pautou para a primeira sessão plenária do ano, no dia 5 de fevereiro, um processo que questiona a decisão tomada pelo governo Jair Bolsonaro de anular anistias concedidas a cabos da Aeronáutica que foram afastados pelo regime militar.

O ato contra os cabos foi editado em uma portaria de 1964 e atingiu cerca de trezentas pessoas. Elas receberam perdão oficial da Comissão de Anistia entre 2002 e 2005, o que incluiu indenizações financeiras. Em 2020, a hoje senadora Damares Alves (Republicanos-DF), que na época era ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, cancelou essas anistias por meio de um processo administrativo. Em dezembro do mesmo ano, o então presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, pediu ao Supremo que anulasse a decisão de Damares. Alegou que a então ministra não respeitou o direito de defesa dos anistiados.

O processo, embora tenha sido pautado, não chegou a ser julgado em fevereiro. Só na última sexta-feira (28) teve um desfecho: o Supremo, em concordância com a tese da OAB, julgou inconstitucional a medida de Damares e a anulou.

À piauí, Santa Cruz disse que resolveu abrir o processo como uma forma de reação ao comportamento do então presidente. Em 2019, Bolsonaro fez uma provocação: “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele.” Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, pai do jurista, militou no movimento estudantil e fez parte da Ação Popular (AP), grupo que reunia as franjas mais engajadas da juventude católica. Ele desapareceu no Carnaval de 1974, quando o filho tinha apenas dois anos.

“A Argentina, que hoje é comandada pela direita, tem uma clareza maior dos crimes cometidos pela ditadura. Eles têm uma democracia com conteúdo mais sólido”, diz Felipe Santa Cruz. Ele conta que não assistiu a Ainda estou aqui, por ser muito sensível ao tema. “Mas alguém me disse que foi o melhor filme argentino feito no Brasil.” Santa Cruz acredita que, além de Dino, outros ministros estão dispostos a considerar que a anistia não abrange o crime de desaparecimento forçado – entre eles, Cristiano Zanin e Cármen Lúcia (em 2010, a ministra seguiu a maioria e votou pela não revisão da Lei da Anistia).

Outros, porém, são refratários à ideia de resgatar a discussão. Em caráter reservado, dois ministros disseram à piauí estar nesse time. Para eles, discutir a Lei da Anistia no plenário, em um ambiente já conflagrado entre o Supremo e outras instituições, é algo que poderia deixar o tribunal suscetível a mais ataques – e, dessa forma, tumultuar ainda mais o julgamento da denúncia contra os golpistas de 2022, previsto para acontecer entre abril e maio.

“Estamos pleiteando ir a Brasília para agradecer o Flávio Dino, o Alexandre de Moraes e o Edson Fachin e conversar com os outros ministros, para que todos esses militares sejam responsabilizados pelos crimes que cometeram”, diz Victoria Grabois. “Outro dia meu filho de 40 anos disse para mim: ‘Mamãe, você está vendo dois generais sendo presos.’ Uma coisa inédita no Brasil. Eu sou contra o punitivismo, acho que a cadeia não educa ninguém. Mas o que importa é a responsabilização. Ser general não é qualquer coisa neste país.”

Victoria assistiu ao filme que concorre ao Oscar, mas conta que não chorou. A ditadura, ela diz, teve o poder de fazer com que as vítimas engolissem as lágrimas. Lembra que, quando queria chorar a perda do irmão, não podia fazer isso na frente da mãe, que só soube da morte do filho anos mais tarde. “As vidas deles não vão voltar, mas eu espero que o impacto do filme traga pelo menos a responsabilização das pessoas que cometeram esses crimes.”

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