Ainda sou um menino de asas?

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Sou menino passarinho \ Com vontade de voar (Trecho de “Prelúdio Para Ninar Gente Grande, de Luiz Vieira)

E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, voa nas asas de um menino passarinho.




Vamos voar?

Durante uma viagem na semana passada topei com um livro que talvez tenha feito parte das minhas leituras de infância. Trata-se de “O menino de asas”, de Homero Homem. Por um breve momento, deixei de lado a piscina, abandonei o maldito celular e me trancafiei em uma sala de leitura onde havia um punhado de livros empoeirados na estante.


Além de “O menino de asas”, havia uma compilação de Garcia Lorca que me interessou a ponto de querer surrupiá-la. Afinal, quem sentiria falta de tal livro em uma salinha de leitura nos cafundós de uma cidadezinha de pé de serra?


Desisti, entretanto, do “shoplifting” (do furto) e me concentrei na leitura do livro de Homero Homem. Já comecei me questionando sobre o nome do autor: Homero Homem. Essa repetição, quase um eco me chamou a atenção. Era algo assim como Clarice Lispector, isto é, soava mais como pseudônimo do que com nome real. Algo como Cícero César… Também li o comentário de contracapa escrito por Rubem Braga, que tecia loas ao livro.


De fato, não tinha ideia de como era o conteúdo da obra. Pensando bem, talvez eu mesmo nunca tivesse o lido na infância, talvez dele só conhecesse a capa. Misturando alhos com bugalhos, algo que não me é incomum, eu misturava alguns livros da coleção Vagalume com outras leituras, indo do “Gênio do Crime” (João Carlos Marinho) ao “Menino de asas”. E assim criei novos títulos por permutação: “O escaravelho do gênio”; “Menino do cinco estrelas”; “Menino vagalume”, entre outros.


A respeito da leitura d´“O menino de asas”, achei-o maduro para um livro infantil. A história dos percalços de um menino diferente dos outros, que nasce com asas em vez de braços, que sai do campo para a cidade grande, que enfrenta o espanto e o preconceito, que quer ser normal, apenas mais um na multidão anônima, é entremeada por manchetes típicas da imprensa marrom. Isto porque o menino de asas se torna o bode expiatório para um monte de crimes sem solução. O menino de asas é a Geni do Homero Homem.


Enfim, essa mistura de gêneros me chamou a atenção. Descontado o probleminha da linguagem usada pelo narrador para expressar a fala das personagens, se trata de um livro que fala mais da época em que foi escrito (do final da década de 1960) do que pode parecer à primeira vista. As pessoas da cidade são oportunistas, tiram vantagem das situações sempre que possível. Qual migrante não se sentiu assim ao menos uma vez?


Durante a leitura, me questionei se a novela não poderia ter parentesco com o filme “O bandido da luz vermelha”, que também mistura trechos de imprensa marrom, linguagem radiofônica, lugares como bocas de favela e afins para falar deste anti-herói, um criminoso que se torna pop, que acaba curtindo ser uma celebridade. Talvez o mundo do filme seja ainda menos ingênuo, ainda mais violento. Mas há semelhanças entre os dois mundos, o do filme e o do livro.


Eu falei do probleminha de linguagem do narrador, talvez isso requeira um maior esclarecimento. É algo um tanto difícil aprender a representar na escrita as outras classes,seus cacoetes verbais, seus timbres. É algo que requer estudo, observação etc. Mas se não tal pesquisa não for feita, fica parecendo que o homem do campo fala exatamente da mesma forma que o malandro do morro, que por sua vez fala da mesma forma que o português do botequim.


É dito que há diversos níveis de leitura, do mais simples até o mais sofisticado, que requer mais observação por parte do leitor. Talvez tenha sido isso o que ocorreu comigo durante a leitura de “Menino de asas”. Talvez eu não seja mais um garotinho.

Não seria de todo mal se eu também não tivesse tido minhas asas podadas.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019),  Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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