Por Cadão Volpato, para o Valor, de Nova York, compartilhado de Blog 0 News
O número de pessoas que leem livros pode ter diminuído no Brasil (e os números, de fato, assustam numa primeira leitura), mas felizmente esses objetos, os livros, continuam ocupando as livrarias e — vá lá — os armazéns da Amazon. E dentro dessa profusão de lançamentos, que nem mesmo a pandemia conseguiu estancar com toda força, os bons livros continuam aparecendo como um alento. Este ano não foi diferente: 2024 trouxe obras de ficção e não ficção capazes de refletir com talento a época tão conturbada em que vivemos
Mesmo um tremendo escritor como Gabriel García Márquez, cuja obra já parecia ter recebido um ponto final (ele morreu em 2014 ), acabou ganhando uma sobrevida polêmica com um romance engavetado por ele mesmo e agora ressuscitado pelos herdeiros.
Antes de apagar com a demência que o levara para a sombra nos últimos anos de vida, García Márquez deixou escrita essa novela sobre uma mulher de sobrenome Bach, que cultiva o hábito dee viajar todo ano, sempre no mês de agosto, para uma ilha caribenha, a fim de colocar uma flor no túmulo da mãe. Ano após ano, na base da repetição, ela acaba entrando numa história de amor que se repetirá, assim como os outros gestos, ano após ano.
Os críticos não gostaram muito, nem do romance, nem da atitude dos herdeiros, mas o fato é que “Em agosto nos vemos” (Recordei) traz um bom bocado do talento do autor para a fabulação – e isso nao e pouco, num ano em que andamos precisando de algum lugar para nos esconder durante algumas horas, só para não sucumbir aos desastres que andaram nos assolando.
García Márquez nunca chancelou livros medíocres, e sua obra-prima, “Cem anos de solidão”, caba de ser transformada em série, numa adaptação que se julgava quase impossível.
Então merecesse ficar na roda de leituras.
Tivemos também um novo Chico Buarque, “Bambino a Roma” (Companhia das Letras). Chega a ser irritante a capacidade que Chico tem de fazer coisas boas, e esta pequena memória carregada de ficção sobre a época em que os Buarque de Holanda moraram na capital da Itália é feita do humor e do senso de observação de um Chico criança que se diverte com tudo e tudo vê.
E se for para ficar na graça ela literatura, 2024 foi um ano que trouxe para os brasileiros os livrinhos engraçados e surpreendentes cio argentino César Aira, cuja elegante caixinha com os quatro volumes é uma atração difícil de ser ignorada. Aira escreve sem parar e parece não se repetir nunca, sempre com estilo.
Um dos livros, “O vestido rosa”, exibe
uma pegada de Guimarães Rosa em
seu célebre conto “O recado do morro”.
Aira homenageia o brasileiro com
uma na história de obsessão fincada nos
Pampas. Precisa ser lido, nem que seja
como porta ele entrada para o seu estranho mundo, ele que é um autor
muito vivo, sempre cotado nas bolsas
de aposta do Prêmio Nobel (Coleção
César Aira, com “A prova” e
“O vestido rosa”, da editora Fósforo).
Em matéria ele Nobel, a leitura do
ano é “Vidas de Meninas e Mulheres”,
de Alice Munro (Globo Livros – Biblioteca
Azul), a história do amadurecimento
de uma garota do Canadá rural
nos anos 1940. É o único romance de
Munro, mais conhecida por seus contos,
e foi publicado em 1971.
A virtude do livro é a forma como se
revela toda a beleza e os desastres de se
tornar mulher no fim do mundo e num
tempo absolutamente hostil. Alice
Munro morreu neste ano, e o Prêmio
Nobel foi ofuscado pelas revelações da
filha, que sofrera abuso sexual do padrasto e no entanto fora acusada de
mentir pela própria mãe. Elas nunca se
reconciliaram. “Vidas de meninas e mulheres”, no entanto, continua em pé.
Em “Faca: Reflexões sobre um atentado”
(Companhia das Letras), Salman
Rushdie ressurgiu do reino dos quase
mortos para ruminar sobre a tentativa
de homicídio que sofrera em 2022,
quando um cidadão motivado pela
mesma sentença expedida contra o escritor pelo Aiatolá I khomeini, em função dos “Versos satânicos”, atacou o escritor à faca no que seria uma simples palestra sobre a liberdade arôstica em uma instituição próxima de Nova York.
Rushdie vivera por mais de 30 anos
à sombra da ameaça do Aiatolá. Passado o golpe, com seus traumas e sequelas, ele ressurgiu com um testemunho pessoal que revela não só os
detalhes do crime, os trabalhos
exaustivos de reabilitação, os danos
familiares, a solidariedade cios amigos
e colegas escritores, mas também
o inevitável humor ácido e uma certa
autodepreciação que não seriam estranhos aos melhores autores britânicos. Um livro sobre o ódio e a redenção possível.
Redenção, humor e autodepreciação
convergem luminosamente na
história de uma das figuras mais conhecidas do nosso tempo, o ator AI Pacino.
Em “Sonny Boy: Autobiografia”
(Rocco ), Pacino desliza com verve e sabedoria malandra pelos seus anos de
formação e também pelos tempos de
glória, que nem sempre foram tão gloriosos
assim, incluindo bancarrotas
memoráveis e vícios aprisionantes.
Não faltam as melhores histórias sobre
os clássicos dos quais ele foi protagonista:
os três capítulos de “O Poderoso Chefão”, “Um Dia de Cão”, “Serpico” e
“Scarface”, só para ficar nos mais conhecidos.
Mas ainda há o teatro de vanguarda
e a vida no Bronx dos garotos encrenqueiros dos quais ele era figura de proa.
Dois livros de autores brasileiros
quase desconhecidos merecem uma
leitura atenta, pela sensibilidade e
naturalidade ela escrita. “Ressuscitar
mamutes”, de Silvana Tavano (Autêntica
Contemporânea), é sobre o luto e
também sobre um personagem não
muito comum na literatura – a mãe.
Num país de mulheres que batalham
sozinhas na sombra, um livro como
esse faz uma bela diferença. E “Ressuscitar mamutes” ainda fala ele ciência.
Já “Ojiichan”, de Oskar Nakasato
(Fósforo). expõe a velhice do ponto de
vista de um descendente de japoneses,
personagem que também não costuma
aparecer na literatura brasileira.
Nakasato havia sido premiado pelo
seu primeiro romance, “Nihonjin”, e
revela um grande talento na extrema
simplicidade com que alinha uma
sentença depois da outra.
Por fim, uma leitura incontornável
de 2024 foi “Mudar: Método” (Todavia,
com tradução impecável de Marília
Scalzo ), escrito pelo francês Édouard
Louis, hipercultuado na última Flip, a
Festa literária de Paraty.
Édouard Louis é dono de uma voz única,
que fala sem papas na língua ( e ainda
assim com literatura) sobre o amadurecimento de seu alter ego, Eddy Bellegueule, que foge de uma vida de pobreza opressiva e preconceito homofóbico da classe operária para construir a carreira de escritor, relatando essa trajetória com uma crueza raramente vista.
Assim como os outros livros destacados
neste ano, “Mudar: Método” é muito
bem escrito e relevante. Que mais pode
querer um leitor num país que ainda,
miseravelmente, lê tão pouco? ■