Alfredo, o caçador do sabor perdido em algum lugar do passado

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Mais uma pitada da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. No cardápio, César traz o personagem professor Alfredo que sai a procura de um sabor do passado.

Beija-flor, 13 de outubro de 2022.




Prezado Washington, como se sabe, o professor Alfredo é uma personagem. Entretanto, tenho por ele uma profunda admiração, como se ele fosse de carne e osso – se possível, mais osso do que carne. Esta história é para ele, homens que comem – e como! – para viver e reviver. Homens que sabem que com Lula a nossa mesa terá fartura outra vez.

Lula lá!

Um grande abraço!

Cícero César

Vamos ao texto.

“Professor Alfredo acordou com uma sensação estranha aquela manhã. Sentiu vontade de comer arroz com peixe, mas não de qualquer lugar. Não, nada de risoto incrementado, não é isso. Ele se lembrou da iguaria que lhe era servida às quintas-feiras na primeira escola onde trabalhou. Veio-lhe às narinas o cheiro acre desta combinação tão brasileira, espécie de sushi sem Nori e sem molho shoyo. Alfredo salivou e se deixou levar pelos pensamentos, pendendo o pescoço de leve, como quem se põe a devanear.

Lembrou-se de sua avó, que descamava peixe com uma faquinha amoladíssima. Tentou lembrar das cantigas que ela cantava, da cor do gato de casa (era cinza, malhado?), que sempre ficava por perto em tais ocasiões para sumir depois durante dias.

Lembrou-se do sururu de capote que as mulheres negras ofereciam de porta em porta, carregando a iguaria em carrinhos de mão. O caldo amarelo, sua vó dizia, é o que salva muita gente da fome.

De vez em quando, Alfredo farejava sururu na feira. Nunca viu sururu de capote, seu favorito. Quando comprou um saquinho de sururu, depois de longas batalhas íntimas e de longa e difícil negociação com o vendedor, foi para casa mais feliz e contente do que torcedor do CSA quando vence o CRB. Acontece que não achou o gosto bom.

Tentou se enganar acrescentando a farinha grossa, mas, no fim, diante do fracasso, deu-se por vencido: raspou o prato na lata de lixo.

“Tudo isso aí é lembrança de outro tempo ainda mais remoto”, disse Alfredo a si mesmo. “O que eu quero agora é arroz com peixe de escola, nada mais que isso, nada menos que isso. Não quero papa de chocolate nem canjica nem macarrão com salsicha nem almondegas nem carne assada carregada no sal. Eu quero arroz com peixe, deem-me arroz com peixe, será pedir demais?”, mal disfarçando o ar amuado.

Sua mulher se pasmou diante do ocorrido. Logo ele, Alfredo, sempre perdido em seus pensamentos, sempre quieto e cerimonioso e obediente, agora depois de aposentado tentando rompantes, fazendo birra que nem criança?

Se bem que criança geralmente faz birra para não comer certos alimentos, o que não era o caso em questão. É, é melhor não pensar mais nisso.

Agora quem ficara perdida em pensamentos era ela. O que tinha acontecido com Alfredo? Ele iria para uma reunião secreta? Ela bem que reparara que ele andava meio esquisito ultimamente, voltando a tomar parte em assuntos políticos, assoviando para dentro o jingle da primeira campanha de Lula.

Ai, Alfredo! Ele era Brizola, ele é Lula, fazer o quê, ele era destemido como uma mula quando cismava com uma coisa. Ela o viu ligar o fusquinha azul; ela ouviu soar aquele barulho de teco-teco tão característico do automóvel; ela o viu fechar o portão e sair. Só não sabia para onde.

Quando Alfredo voltou, ele tinha história para contar. Trazia dois pratos cuidadosamente cobertos por alvíssimos panos de prato com bordados vermelhos.   

Ora, tinha ido à escola procurar uma merendeira dos velhos tempos. Muitos o reconheceram. “Olha o professor Alfredo aí, como vai, Alfredo?”. “Você está ótimo, Alfredo. Você conseguiu se aposentar, ó sujeito de sorte”, diziam alguns.

Foi o destino que o fez conseguir o endereço da merendeira. Não teve dúvidas, foi à casa dela, não era longe dali, e lhe revelou a história com todos os detalhes de que poderia se recordar. Os dois, então, fizeram o arroz com peixe a quatro mãos.

Arroz empapado, como manda o figurino. Riram de velhas histórias. Compraram um refrigerante, daqueles engarrafados em garrafa âmbar de cerveja, em uma vendinha. Que delícia! Quase fartaram-se, quase infartaram de felicidade. Riram até das moscas. Como a escola é condutora de lembranças!

A ponto de fazer vergonha, Alfredo dizia: “Põe mais, por favor, tia!” e ela dizia: “É pra já, meninão! Você não tem comida em casa, não?” E lhe enchia o prato outra vez, já que a turma 601 tinha sido dispensada na última hora.

Depois de terminado o relatório, sentaram-se para comer. A mulher não achou tanta graça assim naquela iguaria esquentada em microondas, ela que era chegada em sushi. “Pode pegar o shoyo pra mim, Alfredo?”.

Ela pediu, enquanto pensava que talvez fosse ofensivo demais dizer a ele que o peixe meio insosso tinha gosto era de papelão. Comeram afastados um do outro em silêncio.

Por derradeiro, ela deixou metade do prato, já saciada. Alfredo, por sua vez, não se fez de rogado. Guardou as sobras para um gato, um gato qualquer, um gato das redondezas, um gato que frequentasse quintais de avós e quintas-feiras em escolas.

Alfredo tinha certeza: um gato de verdade iria preferir sete mil vezes um banquete de arroz com peixe a qualquer comida de gato de latinha disponível no mercado. Espinhas? Os gatos sabem se virar, é para isso que Deus lhes deu sete vidas ou mais.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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