Numa Alemanha sem rumo econômico e político, partido de Sahra Wagenknecht nasce potente e incomoda ultradireita e neoliberais. Suas posições sobre imigração e gênero são controversas. Vale a pena examiná-lo atentamente
Por Antonio Martins, compartilhado de Outras Palavras
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Sarha Wagenknecht prefere evitar o rótulo de esquerda. Em seu país, pensa ela, é algo associado a um setor das elites intelectualizado e distante dos dramas da maioria. Porém, nem o programa do partido que ela lançou nesta segunda-feira (8/1), nem a trajetória pessoal desta deputada alemã de 53 anos, deixam dúvidas sobre o caráter de sua proposta.
A Aliança Sarha Wagenknecht – BSW (nome provisório) propõe-se a resgatar a democracia das ameaças que a ultradireita representa. Pensa que, para isso, é preciso reverter as políticas neoliberais. Quer a recomposição do Estado de bem-estar social e dos direitos trabalhistas. Defende o investimento público em infraestruturas e a recuperação da indústria alemã, abalada pela submissão aos EUA. Propõe virar do avesso a política externa, buscando a paz – inclusive com a Rússia – e abandonando a Otan. Alinha-se às ideias de justiça social, solidariedade e igualdade de oportunidades. Julga que o partido de esquerda tradicional (Die Linke, com o qual Sahra rompeu em outubro passado) tornou-se incapaz de realizar estas tarefas.
A surpresa maior é que, num continente onde quase toda a esquerda parece refluir e a ultradireita avança, a BSW nasce promissora. As pesquisas dão-lhe, de partida, entre 6% e 14% das intenções de voto. Este percentual é mais alto na antiga Alemanha Oriental. E o apoio vem, principalmente, de eleitores críticos ao establishment, até agora capturados pelos neofascistas. Como esta reviravolta pode ser possível?
Uma primeira resposta está no cenário desolador da Alemanha atual. A década de estabilidade que se se seguiu à crise global de 2008 terminou com a pandemia. Os sinais de desglobalização, desencadeados pela quebra das cadeias produtivas globais e pela guerra comercial dos EUA contra a China, afetaram a economia alemã — cuja pujança estava associada a fortes exportações. O país está em recessão desde meados do ano passado.
O governo, formado em 2021 por social-democratas, “verdes” e ultraliberais, não buscou alternativas. Pior: submisso a Washington, mergulhou de cabeça na guerra da Otan contra Moscou. Manteve-se inerte mesmo quando duas explosões destruíram os gasodutos Nord Stream, que asseguravam fornecimento de gás russo barato (há evidências de que os EUA praticaram os atentados).
Muito dependente de energia, a indústria alemã paga agora três vezes mais caro pelo gás importado dos EUA. Parte importante das empresas está migrando, ou perdendo mercados. Mesmo assim, a coalizão no poder persegue um “ajuste fiscal” impopular. No ano passado, a classe média revoltou-se com uma medida que a obrigou a abrir mão do aquecimento a gás das residências. No início deste ano, os agricultores passaram a ocupar cidades com seus tratores, para protestar contra o fim do subsídio ao diesel. A popularidade dos partidos no governo despencou. A maior beneficiada foi a Alternativa para a Alemanha (AfD) neofascista, que já reúne, segundo algumas sondagens, a segunda maior fatia do eleitorado.
Sahra Wagenknecht julga possível ocupar o espaço hoje aberto para a AfD. Nascida na Alemanha Oriental, ela foi por muitos anos militante do Partido Comunista. Economista e escritora, tem sólida formação intelectual – incluindo uma dissertação sobre a Poupança e um estudo crítico sobre o jovem Marx. Sóbria, porém profunda e comunicativa, tornou-se uma das políticas mais conhecidas do país, apesar de sua posição contra-hegemônica. Estas habilidades destacaram-se em inúmeras entrevistas de TV, em que ela demonstra conhecimento de problemas complexos, apesar da frequente hostilidade dos interlocutores.
Suas críticas aos establishment (ela coloca-se como defensora das maiorias “esquecidas pelos políticos”) rendem-lhe o carimbo de “populista”. Vozes entra a esquerda e os liberais acusam-na de desprezar as pautas relacionadas à igualdade de gêneros e à defesa dos imigrantes. Um artigo publicado em novembro no site Sidecar da New Left Review julga as críticas exageradas. Joshua Rahtz, o autor, lembra que Sahra defende a concessão de asilo político e a proteção aos imigrantes na Alemanha. Sua oposição concentra-se na política de portas abertas a todos os estrangeiros, adotada em parte do governo de Angela Merkel. Wagenknecht considera-a favorável ao empresariado, por criar um imenso exército de reserva entre os trabalhadores. Não é contra as lutas de gênero – tem amplos laços com o feminismo – mas julga que sua importância é exagerada pelos meios de comunicação.
A principal debilidade da aliança política de Sahra, segundo Rahtz, é outra: ausência de um movimento social articulado que a ampare. Nesse sentido, a deficiência é semelhante às da França Insubmissa, do Podemos e do Sumar espanhóis, ou dos Socialistas Democráticos dos EUA. Será possível resolvê-la com tempo e ação política?
Os primeiros testes da BSW virão em junho, quando haverá eleições para o Parlamento Europeu e os legislativos de três estados alemães. Mas a criação do partido e as expectativas favoráveis que o cercam são um sinal claro de que há espaço para uma nova esquerda, mesmo numa Europa que parece tão deprimida.