Por Zeca Ferreira, cineasta e professor –
Durante todo esse processo, tenho feito o esforço de tentar comunicar o que acontece aqui para fora da ilha. Somos um bairro pequeno, nossos votos não elegem um vereador, então, conseguir visibilidade e apoio na cidade (e além) era fundamental para que a luta fosse bem sucedida. Mas, para além disso, foi ficando cada vez mais claro para quem viveu o processo que algo especial acontecia aqui. Especial e inspirador diante do festival de absurdos que vivemos país afora.
Nosso problema começa no dia 23 de dezembro, quando os cortes nos horários das barcas são anunciados pela empresa em cartazes afixados nas estações. A forma como a coisa foi feita causa imediata perplexidade, por alguns motivos:
– não existiu qualquer estudo de impacto das mudanças ou qualquer comunicação anterior à comunidade
– os cartazes falavam em “atendendo a decisão judicial”, o que tirava a decisão das mãos de uma empresa simplesmente e nos encurralava ainda mais
– foi feito em período especialmente sensível: na antevéspera do natal, período também de recesso no judiciário e no poder legislativo
– a violência dos cortes era inédita.
Desde sempre convivemos com certa imprevisibilidade, com mudanças de tempos em tempos, quase sempre pra pior.
A última mudança, em 2016, já reduzia horários, criando pelo menos um intervalo de 3 horas no meio do dia, o que já causou bastante transtorno, já que dependemos desse transporte como única forma de entrar em sair.
O que acontecia agora era de outra ordem, um corte de 30% durante a semana e 50% nos fins de semana.
Como há alguns anos já temos instâncias representativas funcionando bem – associação de moradores e conselho comunitário de segurança -. conseguimos rapidamente buscar informações sobre como agir e organizar reuniões.
Já no dia 26 fizemos nossa primeira assembléia, com a presença de duas pessoas da defensoria pública. Para nossa surpresa, apareceram cerca de 500 moradores. Para se ter uma idéia, este número corresponde a uma reunião de associação com 20 mil moradores em um bairro como Copacabana, pois Paquetá conta com pouco mais de 4.500 residentes.
Daí, seguiram-se dois adiamentos na justiça até que foi finalmente marcada uma audiência de conciliação. O processo na origem não nos envolvia: era movido pela CCR Barcas contra o governo do Estado, alegando impossibilidade de cumprir o contrato de concessão, em razão da diminuição no fluxo de passageiros (IMPORTANTE NOTAR: essa diminuição – que eles alegam ser de 50% – seria da linha Niterói- Praça XV, uma vez que o morador de Paquetá não tem outra opção de transporte e a nossa população cresceu no mesmo período).
A defensoria pública então pediu para ser parte do processo, alegando ter uma terceira parte diretamente interessada e jamais contemplada: a população.
Então, para essa audiência de conciliação, o juíz determinou que fosse apresentada uma contraproposta à grade de horários que a CCR tentava impor como solução para os seus problemas financeiros.
Bom, vamos lá, tudo o que foi escrito acima era pra chegar nesse ponto, o grande ponto de inflexão da luta, o ponto de virada que determinou tudo o que veio:
Nossas assembléias permaneceram sempre cheias e o clima sempre foi de irmandade, de “estamos todos no mesmo barco”, o que não significa que não houvesse polêmica e visões divergentes. Essas ficaram bastante concretas agora, quando, pela primeira vez, havia um pedido oficial para que nos pronunciássemos através da defensoria pública.
Em assembléia, não foram poucos os que defendiam alguma negociação, uma redução de danos na tentativa de mantermos os dedos e entregarmos alguns anéis. Entre eles, pessoas bastante importantes para nós e respeitadas no processo da luta.
Negociar era a sugestão da defensoria (que sempre respeitou nossas decisões) e das nossas entidades, compreensivelmente preocupadas com a possibilidade de perdermos tudo. No entanto, em assembléia histórica, a população decidiu por não negociar horários, a nossa contraproposta era a manutenção da grade anterior, que já nos atendia de forma bastante precária.
Aqui cumpre observar algumas coisas:
– essa pode parecer uma decisão radical, uma negativa a um processo normal de negociação, mas ela, na verdade, consolida a questão central da nossa luta: o respeito. Não foi por acaso que #respeitaPaqueta ficou sendo nosso grito e nossa marca.
Em outras palavras, a nossa decisão apontava a compreensão de que não negociaríamos porque negociação nunca houve. A tentativa de impor algo de forma tão violenta merecia uma resposta a altura. O que acontecera no dia 23 de dezembro não tinha outra nome que ataque. Como em Bacurau, estávamos sendo atacados. E diante de um ataque, é preciso se defender;
– a resposta dada pelas lideranças no processo (associação, CCS) a essa decisão foi exemplar.
Uma vez decidido pela revogação, essa foi a motivação e o sentido da luta, sem um porém, sem um passo atrás. Sempre houve clareza dos riscos, mas nunca fomos suicidas
– quando falamos na violência das mudanças de horário, não é em sentido figurado. O que aconteceu nesse bairro após o anúncio das mudanças, só quem mora aqui sabe. Não foram poucas as pessoas que encerraram contratos e se mudaram da ilha em janeiro, inviabilizadas por uma empresa que resolveu nos sequestrar para resolver seus problemas.
Após a implementação de fato de novos horários (que chegaram a vigorar por algumas semanas), o faturamento com o turismo caiu algo em torno de 60-70%, e vários estabelecimentos deram aviso prévio para seus funcionários;
– a decisão pela revogação foi então respaldada por um estudo de impacto que fizemos nós mesmos. Ao longo de 4 dias, mais de 400 questionários foram distribuídos nas barcas, além de visitas a instituições importantes como escola e hospitais. A conclusão foi de que os horários que tínhamos antes já nos atendiam de forma bastante precárias.
Mas nada disso sensibilizou o juiz. A decisão veio em nosso desfavor, concedendo apenas alguns ajustes àquela grade do dia 23, acordados por CCR Barcas e Secretaria de Transportes. Esses ajustes nos foram apresentadas em reunião com a secretaria na véspera da audiência, em um papel mal ajambrado, com alguns ajustes feitos apenas em dias de semana. O juíz não chegou a sequer passar os olhos em nosso relatório (“eu não pedi isso, eu pedi uma grade”), e nos deu alguns dias para que, caso quiséssemos, “mexêssemos dez minutos pra cá ou pra lá nos horários”, mas sem alterar os cortes.
Em assembleia bem menos polêmica, decidimos por não fazer qualquer ajuste “de dez minutos”, seguiríamos na luta por respeito e pela revogação completa da grade.
Essa sugestão do juiz foi inclusive pedagógica para reafirmarmos nossa decisão coletiva, pois pequenos ajustes pontuais “de dez minutos pra cá o pra lá” poderiam ser feitos e resolveriam em parte o problema de alguns, gerando novos problemas para outros. Era exatamente essa a situação: não poderíamos atuar em função de uns em detrimento de outros; não entraríamos em uma luta fratricida que, ao final, deixaria mais sequelas que soluções.
Daí em diante, foi o que conhecemos. A grade implantada “para ajustar a oferta à demanda” e “para realizar melhorias operacionais” (informes da CCR afixados nas estações) foi o caos que já anunciáramos: barcas lotadas, uso e abuso das barcas lentas e sem ar condicionado (o tempo entre as viagens da nova grade permitiam que só elas fizessem a travessia), atrasos, confusão, desgaste. Mais gente se mudou, mais dinheiro se perdeu, mais a imagem da ilha de desgastou para o turismo (quem veio a Paquetá nos fins de semana do período em que vigorou essa grade, possivelmente não volte mais aqui).
Do nosso lado, inúmeros atos, oficinas de cartazes e camisetas, textos, vídeos, debate, assembleias, matérias na imprensa, além de uma massificação cada vez maior do movimento, além dos apoios que vinham do continente e de mais longe.
Nosso pleito era justo e se fez visível, e, com a volta aos trabalhos da ALERJ, conseguimos um acordo que revogou a grade e nos permitiu respirar até o final desse ano.
Tudo isso pra dizer que, sim, a luta no bairro é fundamental. É concreta e é pedagógica. Que, sim, precisamos retornar ao trabalho de base. Mas é preciso fundamentalmente pensar sobre o que exatamente significa isso. O trabalho de base em Paquetá não resultou porque tivemos uma vanguarda a frente apontando o caminho. Tivemos lideranças sim, fundamentais, porque foram capazes de sentir o pulso da população, conhecer as suas necessidades e a sua ousadia e apostar nisso, muitas vezes contrariando as suas próprias certezas.
A solução está mais perto da gente do que a gente pensa.