Por Lauro Neto em Projeto Colabora –
Cidade do momento na Europa, capital portuguesa tem aumento de aluguéis, e brasileiros relatam preconceito
Ao andar por uma das ladeiras do bairro histórico da Alfama, um dos berços do fado em Lisboa, é possível ler versos controversos pichados à porta de casas que até pouco tempo eram habitadas só por lusitanos. Paródias como “A casa portuguesa foi arrendada pelos turistas” e “Busco um apartamento ao oriente do Oriente”, “assinadas” com ironia e giz de cera pela fadista Amalia Rodrigues e pelo escritor Fernando Pessoa, dividem espaço na parede com a hashtag menos sutil #Fuck AirBnB. Até Madonna, que vive há alguns meses num hotel de luxo lisboeta, tem recorrido ao Instagram para chorar seu enfado por não conseguir encontrar um palacete para chamar de seu. Se não está fácil nem para a diva milionária, alugar um lugar para morar virou uma missão quase hercúlea na capital portuguesa: só no primeiro trimestre deste ano, o valor do aluguel de novos contratos aumentou 18% em relação ao mesmo período de 2016.
O percentual é o dobro do aumento médio de 9% em Portugal, segundo dados da Confidencial Imobiliário, empresa portuguesa especializada em estatísticas do setor. Enquanto os números sobem a ladeira, uma das esquinas da rua íngreme da Alfama assiste a uma cena típica das diferenças culturais luso-brasileira: um nascido em Juiz de Fora faz churrasquinho na calçada, à porta de casa, enquanto sua vizinha reclama da fumaça que sobe e suja as roupas estendidas para secar no varal – quase sempre colocado do lado de fora da janela nas residências portuguesas. “De novo?! Já não te falei que não podes fazer isso?”, ela resmunga impaciente. “Já estou terminando, vizinha!”, ele responde em tom jocoso.
O breve diálogo dá pistas de por que muitos portugueses ainda têm certa resistência em alugar imóveis a brasileiros. Mesmo que sejamos a maior comunidade estrangeira em Portugal (22% do total), com mais de 87 mil residentes no país, não é raro que proprietários ou corretores desliguem o telefone na cara ao ouvir o sotaque diferente do outro lado da linha. O empresário carioca Marcelo Marotta passou por algo parecido quando se mudou com a mulher e os dois filhos, em agosto, do Rio para Lisboa, por conta da insegurança provocada pela crise política-econômica e pela violência. Ele decidiu procurar apartamento no Barreiro, do outro lado do Rio Tejo, para fugir dos altos preços da capital e ficar mais perto dos familiares portugueses. Ficou hospedado um mês e meio na casa do tio enquanto penava para encontrar um local em conta.
“Quando ligávamos ao ver um anúncio recente e reconheciam o sotaque, diziam que já estava reservado ou alugado. Na noite de um sábado, vimos um anúncio que havia acabado de entrar num site. Na segunda, liguei no primeiro horário para a imobiliária e disse que estava interessado. A telefonista anotou meu número e falou que fariam contato comigo, pois todos os consultores estavam em reunião. Como eu estava na casa do meu tio, meu primo português também ligou, disse que estava interessado e deixou o telefone de contato. Retornaram a ligação para ele, mas não para mim. Na manhã seguinte, fomos à imobiliária, e a telefonista disse que o apartamento já estava reservado e que não poderíamos visitá-lo. Fiquei bem chateado, falei que isso era preconceito e que não havia possibilidade de ser reservado da noite pro dia. Ela pediu desculpas, disse que não havia preconceito, mas reconheceu que os brasileiros que vinham antigamente fizeram muita besteira e queimaram nosso filme”, conta Marotta.
Cobranças abusivas
Ele acabou conseguindo alugar o apartamento de um suíço casado com uma brasileira. A paulista Ellen Theodoro, consultora imobiliária da WDB, em Lisboa, confirma as impressões da discriminação sentida por Marotta. Ela cita casos similares ao enfrentado pelo empresário carioca e também de exigências abusivas feitas a clientes brasileiros. Como a maioria não tem um fiador português e o comprovante do IRS (equivalente ao nosso Imposto de Renda), os proprietários cobram parcelas adiantadas do aluguel.
“Teve um cliente brasileiro que não tinha fiador, mas estava disposto a pagar a mais, adiantado. Quiseram cobrar 1 ano de aluguéis antecipados. Legalmente, você não pode pedir mais de duas rendas antecipadas. Existe preconceito sim, e é superconstrangedor. Você não pode deixar de arrendar para uma pessoa por causa da nacionalidade. Isso é remanescente da última geração brasileira que veio para cá. Davam muito golpe e se aproveitavam da inocência portuguesa, em contraposição ao jeitinho brasileiro de malandro. Isso dificulta para alugar. Acredito que esse tipo de comportamento não exista daqui a alguns anos. Temos a responsabilidade de mudar isso. O povo do Brasil agora vem para estudar ou arrendar para morar com a família”, compara Ellen.
A consultora acrescenta outro fator que colabora para que portugueses não vejam com bons olhos alugar imóveis não apenas para brasileiros, mas para franceses, chineses, belgas, indianos, árabes ou quaisquer outros estrangeiros que estejam se mudando para a cidade europeia da modinha. A invasão gringa é um dos principais motivos da especulação imobiliária, que tem expulsado os moradores locais com os altos preços de aluguel. O salário mínimo em Portugal é de 557 euros, um dos menores da Europa, e o aluguel de um quarto dificilmente sai por menos de 250 euros. Enquanto isso, para os estrangeiros, o custo de vida ainda é menor do que em seus países de origem, e a qualidade de vida maior, com um clima ameno e a quase ausência de violência e riscos de terrorismo.
“Houve um boom no arrendamento porque muitos estrangeiros se mudaram para cá. Como há muita demanda para pouca oferta, os proprietários começaram a cobrar cada vez mais alto. Viram que o pessoal estava pagando, e cada um passou a fazer seu valor. Há muitos portugueses que estão rescindindo contratos com moradores locais para alugar para estrangeiros. Isso não é positivo, pois pode acarretar xenofobia”, ela avalia.
Recentemente, o Airbnb anunciou que, somente entre junho e agosto, houve mais de 1,1 milhão de reservas em Portugal, 59% a mais do que no mesmo período de 2016. O verão acabou, passou o início do ano letivo em setembro e outubro, em que muitos universitários migram para estudar no país, mas os aluguéis continuam altos. Apesar disso, o economista português Ricardo Guimarães, Diretor da Confidencial Imobiliário, minimiza os efeitos do boom imobiliário e descarta uma bolha. Segundo ele, os preços estão subindo a partir de níveis bastante baixos e, apesar de a recuperação estar se intensificando, ainda não se atingiram os valores pré-crise em muitos municípios:
“Não diria que existe um aumento fora do normal quer nas rendas (aluguéis) quer nos preços (para venda). É preciso ter em conta que, por um lado, a subida mais acentuada é limitada a zonas específicas de Lisboa e Porto e, por outro, que a pressão de uma subida mais rápida nessas zonas se deve também à escassez da oferta face a uma procura que tem hoje mais fontes (estrangeiros e portugueses) e também mais motivações (primeira habitação, uso turístico, imobiliário como investimento).”
O publicitário carioca Victor Costa acompanhou de perto esse aumento de preços. Ele veio morar em Lisboa no ano passado, quando alugou um apartamento mobiliado de dois quartos em Alfama por 730 euros, com contas incluídas (luz, internet, gás e água). Dividiu a moradia com a namorada até março, quando foram para o Rio. Ao retornarem em setembro para ele cursar mestrado em Data Science and Machine Learning na Universidade Nova de Lisboa, o mesmo imóvel estava custando 850 euros por mês, sem as contas. Após enfrentar situações como o atraso de mais de uma hora de um proprietário que marcara uma visita a seu imóvel com mais de 10 pessoas agendadas no mesmo horário, Victor quase alugou um quarto e sala pelos mesmos 850 euros no desespero de não conseguir um lugar para morar. Só desistiu diante das cláusulas abusivas do contrato.
“Além de querer que pagássemos sete meses adiantados, sendo um de caução, a proprietária acrescentou absurdos contratuais, como se fôssemos otários: caso comprássemos algo para a casa, por exemplo uma máquina de lavar ou algo decorativo, passaria a ser dela. E, se quiséssemos alterar alguma cláusula, teríamos que pagar para o advogado dela fazer isso. Por sorte, conseguimos alugar um outro de dois quartos por 730 euros (mobiliado mas sem contas incluídas) cuja proprietária estava numa situação delicada, com a mãe internada. Mas ela não registrou o contrato para não pagar impostos, o que barateou um pouco”, compara Victor.
Brasileiros acusados de roubo
Já a jornalista paulistana Paula Bernardini sofreu por quase um mês até conseguir fechar o contrato de um apartamento para morar com o namorado. Nos primeiros 30 dias, eles dividiram um quarto de casal na casa de uma portuguesa, com acesso à cozinha e a banheiros compartilhados com outros dois outros hóspedes, mas sem o uso da sala, trancada pela proprietária. Pagaram 620 euros pela reserva feita no cartão de crédito pelo Uniplaces (uma espécie de Airbnb para universitários) mais 490 euros de caução em dinheiro para a dona do imóvel, dinheiro que seria devolvido por ela caso não houvesse nenhum dano material.
Um dia após se mudarem para o dois quartos que alugaram por 800 euros em Moscavide, área que fica 30 minutos distante do centro de Lisboa de metrô, eles foram pegar o caução de volta e devolver as chaves à proprietária do primeiro imóvel. Depois de conferir os 490 euros devolvidos por ela, o casal saiu. Naquele momento, havia outros dois hóspedes na casa, um da Suécia e outra do Cazaquistão. A surpresa desagradável veio no dia seguinte, quando Paula recebeu uma ligação da proprietária acusando-a e seu namorado de terem “pegado” 300 euros a mais e ameaçando denunciá-los por roubo.
“Ela estava descontrolada, dizendo que não encontrava os 300 euros que a outra hóspede havia dado a ela, e falou que a única hipótese era a de que tivéssemos pegado esse dinheiro. Argumentei que contamos o dinheiro na frente dela e que havia outros hóspedes na casa. Fiquei muito nervosa com a situação. Meu namorado pegou o telefone e disse: ‘a senhora vai encontrar esse dinheiro e ainda vai pedir perdão pra gente’. Foi o que aconteceu quase duas semanas depois: ela mandou uma mensagem pedindo desculpas porque havia achado”, relembra Paula.
Foi também através de um SMS que a carioca Camilla Pacheco sentiu uma discriminação velada ao tentar alugar um quarto para morar enquanto faz mestrado em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa. Ela havia combinado de visitar um apartamento na manhã de um domingo, mas acordou indisposta e avisou à proprietária que não poderia mais ir naquele dia. Como resposta, recebeu uma mensagem questionando se ela era mesmo uma estudante, pois parecia não se tratar de uma “rapariga séria”.
“Fiquei muito chateada. Acho que foi uma forma bem subliminar de preconceito, sim. Eu li nas entrelinhas, porque já vim pra cá esperando situações desagradáveis. Ela não foi explícita, mas qualquer pessoa que tem dois neurônios percebe que ela só falou isso porque sou brasileira”, diz Camilla.
Um mês em uma van, e apenas 5 banhos
Para economizar dinheiro, o paulista Leonardo Leal morou um mês dentro de uma van, antes de sua família alugar um apartamento de quatro quartos por 1750 euros em Carcavelos, zona litorânea que fica a 30 minutos de Lisboa. Ele deixava o carro parado no estacionamento da Universidade Nova, onde faz mestrado em Gestão da Informação. Não enfrentou preconceito, mas outros perrengues práticos, como quando a bateria do veículo acabou, e ele teve que contar com a ajuda de outras quatro pessoas para empurrá-lo
Enquanto a maioria dos inquilinos temporários quer alugar um apartamento todo mobiliado, Leonardo tinha apenas um fogareiro de duas bocas, um botijão de gás e uma cama improvisada com colchão de ar, além de uma mala e cinco pranchas de surfe. Até dormia bem, mas acordava na hora em que o sol tornava a van um forno. Passava o dia inteiro “fora de casa”, aproveitando o wi-fi da faculdade. Mas a parte mais difícil mesmo era o banho – ou a ausência dele.
“Não queria pagar um hostel ou alugar um quarto, justamente pela grana. Tem muito mais procura do que oferta. Então, tomava banho na casa dos amigos. Mas, em um mês, devo ter tomado uns cinco banhos. Fui ao mercado e me senti meio mendigo. Se fosse para viver assim durante todo o curso, seria difícil”.