Alvorada de um entardecer

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Por Marco Aurélio Vasconcellos, cantor, compositor, poeta, cronista

O taxista colocou as maletas e o aparelho de som no porta-malas e o velho, se acomodando com alguma dificuldade no banco traseiro, deu o destino. Enquanto o carro se deslocava pelo trânsito emperrado da cidade, Facundo Santarroyos fazia um retrospecto de sua vida e se convencia do acerto da decisão tomada. O derrame lhe imprimira marcas indeléveis e a recomendação médica era a de evitar excessos e preocupações. Por isso, decidira entregar a direção da pequena indústria ao sócio minoritário e passar o resto de seus dias de viuvez numa casa de repouso. Ali deixaria fluir a energia e o bom astral. Suas marcas registradas. Felizmente, ao longo dos anos, a empresa florescera e acumulara lastro suficiente para lhe assegurar uma velhice tranqüila.




A idéia surgiu ao se deparar com o anúncio de um “Residencial para a terceira idade”, posto com destaque num matutino de domingo. Aprovou de imediato o futuro lar após minuciosa inspeção do local. A qualidade do serviço lhe pareceu excelente.Tratava-se de um empreendimento novo, ainda com poucos internos. O lugar era calmo, com apartamentos individuais, serviço de primeira, controle médico, enfermagem permanente e um lindo bosque de árvores frondosas nos fundos.

Quando resolvesse avisar os filhos, já estaria instalado e sem a mínima perspectiva de voltar atrás. Era um cabeça-dura: herança basca de que tinha muito orgulho.

Despertou dos pensamentos com o ruído triturante dos pneus sobre o cascalho da alameda de ingazeiros que conduzia até o casarão de amplas janelas envidraçadas. O motorista estacionou defronte à porta de entrada e aligeirou-se para auxiliá-lo, mas o velho Facundo, mantendo a costumeira altivez, dispensou a ajuda.  Descendo do carro com algum esforço, rumou para a portaria com andar sereno e levemente claudicante.

O porte esguio, o talhe do terno de casimira escura e a tez morena a contrastar com os cabelos prateados revelavam um homem fino. Enquanto o atendente preenchia a ficha de admissão, Facundo vislumbrou uma senhora de alva cabeleira em desalinho, sentada diante da TV com olhar vago e cabeça baixa. Em seguida, o funcionário conduziu-o pela suave rampa que levava ao piso superior.

O apartamento individual, decorado com sobriedade, possuía o indispensável: cama rústica com criado-mudo, escrivaninha, estante com TV a cores e escaninhos laterais para livros, cadeira de balanço, postada junto à janela que dava para o bosque, e um pequeno guarda-roupa, tudo do mesmo estilo. Por sobre a cabeceira da cama, um crucifixo e um quadro de flores do campo completavam a decoração. Experimentando a maciez do colchão com as mãos espalmadas, o novo interno indagou do atendente quem era a velhinha da sala de estar.

— Dona Iolanda é a primeira cliente desta casa. É apática e depressiva. Não se interessa por nada. Veio de outra clínica e diz que os familiares a abandonaram. O que aconteceu por lá eu não sei. Aqui, na verdade, só vieram uma vez. Quando a trouxeram. Depois disso, nunca mais. E já se passaram mais de quatro meses…

 Facundo deu um longo suspiro, dispensou o funcionário, abriu as maletas e pôs-se a arrumar as roupas no armário com meticulosa ordenação. Nos dias que se seguiram o velho fez uma detida análise de tudo quanto havia na casa. Aproximou-se dos internos, distribuindo simpatia e captando a confiança de todos. O diálogo com dona Iolanda foi difícil. Ela se recusava a encará-lo. Quando, por fim, se dignou a emitir duas ou três monossilábicas respostas, esquivou-se de olhá-lo nos olhos. 

Facundo, paciencioso, pouco a pouco despertou a atenção da velha. Dias depois, ganhando sua confiança, teve confirmada a informação do atendente. Ponderou-lhe, então, que casos como o dela não eram incomuns. Refletiam o lado escuro da natureza humana. Mas nem por isso ela devia morrer para o mundo. Havia outras coisas importantes. Principalmente naquela casa, onde todos deviam dar-se as mãos. A união e a solidariedade mútua dos internos eram a chave para alimentar a força de cada um.

E foi assim que, pouco a pouco, o velho Facundo começou a entabular alguma conversa com Dona Iolanda: discorria sobre amenidades, contava piadas, fazia gaiatices. E nada disso foi em vão, porque, depois de tanta insistência e repetidas atenções brejeiras, conseguiu ele extrair um tímido sorriso da velhinha. A partir daí, os diálogos ficaram mais fáceis, mas sempre provocados por Facundo.

Até que um dia, como num passe de mágica, ela, espontaneamente, lhe dirigiu a palavra. A partir daí se estabeleceu entre ambos uma relação cordial, pautada pela confiança mútua. Tornaram-se amigos e confidentes.      

Enquanto isso, Facundo dedicava boa parte de seu tempo a examinar o lado bom das atividades dos internos e os aspectos negativos do estabelecimento. Certo dia, procurou a direção e expôs as conclusões de suas análises. Ponderou que o entretenimento dos internos não poderia ficar restrito à televisão e ao jogo de cartas. Era necessário algo mais, que estimulasse neles o gosto pela vida. Era necessário haver festas, além das tradicionais sinaladas nos calendários. Quem sabe, reuniões dançantes com música ao vivo e apresentação de shows musicais e de dança? – ponderou.

A administração da casa resistia, contrapondo que o custo de tais eventos seriam excessivos e, por certo, teriam de ser repassados para os internos. Facundo insistiu e argumentou que tais custos poderiam se tornar inexpressivos na medida em que a direção da casa fizesse um convênio com outros estabelecimentos do gênero. A afluência de internos seria muito maior e os custos repartidos.

De tanto insistir e ponderar, a direção do estabelecimento acabou concordando em procurar a administração de outras casas de repouso, para pôr em prática as ideias de Facundo. E logo surgiram reuniões dançantes, com música ao vivo e também com DJs. O ambiente se transformou por inteiro, com a adesão de internos de outros estabelecimentos do gênero, canalizados para as noitadas de festa.

Faceiro da vida, Facundo não ficou só nisso. Resolveu encenar uma peça de teatro: mandou buscar um livro sobre a peça ROMEU E JULIETA, de Willian Shakespeare, que ele próprio dirigiria e encenaria também como o personagem central. Escolheu os personagens da família Capuleto, atribuindo a dona Iolanda representar a outra figura central, Julieta. E puseram-se a ensaiar os diálogos durante cerca de três meses.

Finalmente, a peça foi encenada, com o estabelecimento completamente lotado, sendo alvo de aplausos frenéticos ao final, diante do fantástico desempenho dos personagens centrais, vivenciados por Facundo e dona Iolanda.Tão estrondoso foi o sucesso da encenação que até se cogitou de ser feita uma reprise num dos teatros da cidade, mas o alto custo de sua realização por essa forma impediu que essa ideia se concretizasse.

A despeito disso, todos os internos passaram a esbanjar alegria, seja pelos que contracenaram, seja pelos que atentamente assistiram a peça.

E foi assim, no entardecer de uma tarde outonal, com o sol a projetar  estáticas sombras compridas no chão do pequeno bosque que havia nos fundos da casa de repouso, que, entre elas, duas longas sombras humanas, de mãos dadas, se moviam em   alegres comentários e fartos risos, rememorando momentos inesquecíveis do grande drama de Shakespeare.

Conto iniciado em abril de 1996, em Porto Alegre, e concluído no Condomínio Náutico Lagoa do Passo, em 04 de maio de 2021

Foto: Washington Luiz de Araújo

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