Por Marco Antônio Vieira, compartilhado de Cultura Revista
O cinema pode ter vários papéis e funções, além de ser entendido com arte. Um deles é oferecer respostas a perguntas relativas a temas obscurecidos. Tanta luz foi jogada nos últimos anos sobre a política brasileira, e mesmo assim muitos assuntos restam opacos, ambíguos. Exigia muito tempo a montagem do quebra-cabeças, no ritmo e no volume do que era bravamente apurado e publicado por jornalistas inquietos. Apuração, esse conceito que atravessa o jornalismo e o sistema de justiça, na verdade dá muito trabalho, é pedregoso. Saturação do tema não chega a ser um pecado tão grave. Grave mesmo é a escala da corrupção no plano humano, que ‘Amigo Secreto’ aborda aqui e ali.
Seria clichê falar apenas em Brasil. O que se sabe, o que apontam as evidências até o momento, é uma tremenda falta de escrúpulos materializada, por exemplo, no conceito de lawfare, que o novo filme de Maria Augusta Ramos gentilmente apresenta e aprofunda: a guerra não através de armas bélicas, mas por meio de arcabouços legais e procuradores/advogados, com grave poder destrutivo.
Muito se falou do atrevimento, digamos assim, da ideia de uma parcela pobre da população brasileira ter acesso a perspectiva de inclusão socioeconômica, de ter uma pequena fatia do bolo desse país tão rico! Era assim que parte da classe média entendia a possibilidade de melhora de vida durante os governos do Partido dos Trabalhadores.
Nessa mesma linha de ousadia, o conceito de uma ‘grande empresa petrolífera brasileira com acesso a imensas e recém-descobertas reservas de óleo e gás, desejosa de inovação tecnológica’, parece ter sido demais para os estadunidenses e outros players da geopolítica global.
A destruição que se vê no Brasil em 2022 é consequência de um longo processo. Do desemprego em massa, ao prejuízo econômico que Lava Jato causou, estimada em cerca de 3 vezes mais do que ela jura que recuperou/vai recuperar, passando por um governo genocida responsável por mais de 660 mil mortos e 33 milhões de pessoas passando fome. Espanta que essa derrocada tenha começado e operado por motivos tão mesquinhos. É fundamental ter a capacidade de sair no anestesiamento e se chocar de novo e de novo.
O novo documentário de Maria Augusta Ramos reencena essa história e agrega informações de uma maneira acessível, num discurso plurivocal. Há didatismo mas também há sutileza. A escala humana vista em ‘O Processo’, seu doc anterior, permanece forte. É muita podridão que ainda não ganhou a visibilidade que merece, um realce, um sublinhamento em meio ao incessante fluxo de informações da atualidade.
A última parte do filme aponta para tantas coisas que ainda estão em jogo, em disputa, e quem são esses atores. E o que cabe nesse momento histórico é posicionamento e ativismo. Não será fácil recuperar esse país, resta a conclusão.
O filme ‘Amigo Secreto’ oferece a possibilidade de um vocabulário comum pra ser replicado, que cabe em pouco mais de 2h. Se a especificidade do cinema é a montagem, aqui está um belo exemplo de cinema majestoso: imagens que assim costuradas tem mais potência. Nesse caso, potência construtiva de entendimento.