Tárik de Souza destaca os diversos tons de Antonio Adolfo com Cole Porter e a filha Carol Saboya
Por ColaboraJazz, compartilhado de Ama Jazz
Garoto prodígio da bossa nova, que estudou com Eumir Deodato e a erudita francesa Nadia Boulanger, o carioca Antonio Adolfo Maurity Sabóia, aos 16 anos, já liderava o trio 3D. O grupo participou do lendário musical Pobre Menina Rica, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, e acompanhou de Elis Regina a Wilson Simonal. Seu subsequente Conjunto 3D revelou Beth Carvalho e projetou o guitarrista Helio Delmiro. Com a eletrônica banda A Brasuca, no final dos 60, emparceirado ao letrista Tibério Gaspar, Adolfo mandou hits do estilo toada moderna, como Sá Marina (regravada na versão Pretty World por Stevie Wonder), Juliana e Teletema. Em 1970, também com Gaspar, fincou o marco autoral do soul Brasil na curvilínea BR-3, tonitruada por Toni Tornado. Sete anos depois, deflagrava a insurreição do disco independente a bordo de seu Feito em Casa (selo Artezanal), vendido sem intermediação de gravadoras, o que o permitiu ainda retrofitar repertórios dos pianeiros pioneiros Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga. Atualmente, em sua etiqueta AAM alternando-se entre EUA e Brasil, transita entre os repertórios do jazz (Wayne Shorter, John Coltrane, Dizzy Gillespie, Bill Evans, Keith Jarrett) e bossa nova (Tom Jobim, Carlos Lyra, Roberto Menescal).
Em seus dois mais recentes lançamentos, ele revisita o extraordinário ás da “american song” Cole Porter (1891-1964), no petardo instrumental Love, e o próprio repertório autoral dos anos 70/80, na voz de sua filha Carol Saboya, em Outro Tom (ambos lançados por seu selo AAM). Desnecessário dizer que o pianista “abrasileira” o compositor americano de tantas afinidades com a MPB. “A bossa nova surgiu de encontros no Rio, onde sempre esteve presente o repertório de Cole Porter”, documenta ele. “E a música deste gênio, imortalizada através de melodias, letras, harmonias e fraseado único, influenciou aquela geração de músicos, inclusive a mim”, reconhece. O título do disco “tem a ver com o número de vezes que ele usa a palavra ‘love’ nas canções”, anota Adolfo.
Várias têm a palavra de quatro letras em inglês já no título, como a sedutora Love for Sale. De balanço latino inerente, ornada por incandescentes solos de trombone e guitarra, a canção foi escrita por Porter para o musical The New Yorkers, de 1930, somando, então, 168 apresentações na Broadway. Tinha a audácia de assumir o ponto de vista de uma prostituta apregoando seu trabalho (“Quem está preparado para pagar o preço/ de uma viagem ao paraíso?”). O moralismo da época impôs alguns vetos de rádios ao tema, que a mega cantora Billie Holiday (uma ex-prostituta) escancarou em 1952, e Miles Davis, esgrimiu em 1968, com seu sexteto.
O líder Adolfo (piano e arranjos) conta com uma pequena big band de alta coesão, integrada por Marcelo Martins (flauta, saxes tenor e soprano), Danilo Sinna (sax alto), Rafael Rocha (trombone), Jessé Sadoc (trumpete, flugelhorn), Lula Galvão (guitarra), Jorge Helder (baixo), Rafael Barata (bateria e percussão, com Dada Costa). Em mais uma do tema título, I Love You, o grupo desata em samba a vocação de bolero do original, composto para o musical de palco Mexican Ride, de 1944. Triscada de sopros e construção enérgica de bateria em reviradas, a declaração de amor para a qual o próprio Porter considerava ter articulado “letra ordinária” (“é primavera de novo/e os pássaros voam outra vez”) ganha um inescapável embalo de gafieira, com direito a passagem de ijexá.
Também no tema, So in Love, do musical Kiss me Kate, da Broadway, de 1948, baseado em A Megera Domada, de Shakespeare, progride em camadas sombrias na cadência do piano, palmilhado por sopros, com um longo e lânguido solo de Jessé Sadoc. Easy to Love, a composição que abre o disco, debutou no filme Born to Dance, de Hollywood, de 1936. Ela samba sob breques dos metais com espaço para expansivos discursos de sax, trombone e mediação de piano. Do mesmo musical é outro mega clássico (praticamente todos são) I’ve Got You Under My Skin. O tema que se tornou uma espécie de canção assinatura de Frank Sinatra ganha monólogo pianístico de Adolfo, logo respondido pelos metais com bateria marcando bossa e sax puxando os solos. Lançada no musical The Gay Divorce, de 1932, mais tarde levado aos cinemas pela dupla dançante Ginger Rogers e Fred Astaire, a icônica Night and Day foi parar até no som da banda irlandesa de rock U2. No disco, desliza mansa, mas suingada, com espaço para enternecedor solo de sax.
Há momentos em que Porter soa quase um pré-bossanovista, como em I Concentrate on You (do filme Broadway Melody, de 1940). A composição foi gravada no célebre disco Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, de 1967, com arranjos do alemão Claus Ogerman. Seu “balanço blocado” influencia a versão de Adolfo & Cia, com direito a arabescos de trombone e flauta alada. A mais antiga composição do cardápio, You do Something to Me, do musical Fifty Million Frenchmen, de 1929, aos 95 anos, demonstra seu frescor na travessia para o samba, com direito a cuíca no final, e uma lembrança na ginga do arranjo perpetrado por Clare Fischer para o disco João, de João Gilberto, de 1991.
Em diapasão diverso como sugere o título, literalmente, o Outro Tom, de sua filha Carol Saboya, funciona como uma parceria, já ocorrida nos títulos Ao Vivo (2006), Lá e Cá (2010) e Copa Village (2015) com
Hendrik Meurkens. Desta vez, em seu décimo quarto título, Carol celebra ao mesmo tempo seus 25 anos de carreira e os 60 do pai, cujo repertório “off-big hits” ela revisita. É o período compreendido entre 1972 e 1980, quando Adolfo “trocou o mainstream da indústria pelo artesanato musical, praticamente criando o mercado independente no Brasil”, como situa o texto de apresentação.
Além do tempero mais pop, com produção musical e arranjos do gaúcho Guto Wirtti (titular ainda de baixo, teclados, violão, percussão) o disco enfatiza o Adolfo (piano Fender em algumas faixas) autor de letra e música. Apenas uma das escaladas não foi versada por ele: Alegria de carnaval, de sua habitual parceria com Tibério Gaspar (1943-2017). A faixa mescla a gravação original de 1979, no heroico estúdio dos independentes, Sonoviso, convocados AA nos teclados Fender Rhodes, metais de Binho, Zé Carlos Bigorna e Serginho Trombone, com os atuais Gabriel Quinto (guitarra), Wirtti (baixo) e Renato Máximo (bateria). É um frevo acendrado cheio de breques e recomeços e versos típicos, como “Entrei na dança/agora é hora de esquecer a dor (…) confete colore o chão”.
No roteiro há ainda rock agalopado de letra aliciadora, “que fala dos produtores independentes”, em Até que Venha o Amor. Ou uma balada espacial utópica, calafetada por trompete em Silêncio da Aldeia (“Eu você a lua cheia/nossos pés na areia/pra que mais?/pra que mais?”), gravada por Erasmo Carlos, no disco Pelas Esquinas de Ipanema, de 1978. Com sua voz inconsútil de fraseado sutil Carol tanto revisita as cantigas feitas pelo pai para acalentar a filha e já gravadas por ele, Carola (do disco Encontro Musical, de 1978) e Acalanto de Feito em Casa, 1977) quanto engata baladas densas e incisivas como Deixa a Fonte Despejar (“para de se lamentar/é hora de se mostrar/não vai poder parar”), de Continuidade, (1980), e Porque é que Você se Esconde?, do raro solo de Adolfo, de 1972, descamisado na capa marinha, um álbum à parte em sua discografia.
O disco embute também um sucesso da era digital, Aonde Você Vai, estouro recente das plataformas, espécie de xote repicado, num diálogo vocal de Carol com o mais novo parceiro de Adolfo, o modernista caipira Renato Teixeira, encerrado em coral e uma pisada de maracatu: “Aonde você vai com tanta ganância/com tanta arrogância?/tanta ignorância/eu vou/eu não sei onde eu vou”. Outro repescado no álbum Continuidade, o samba pop A Cada Dia que Passa, registrada inicialmente por Emílio Santiago, destila farpas, mas sem a pegada do protesto tradicional: “Morrem pessoas lá fora/a cada dia que passa, aumenta a fumaça/e o povo bebe a cachaça/tentando esquecer a sua opinião/ficam as pessoas aflitas/sem direção, passando fome/e a preguiça cede ao dragão/e tudo passa, tudo fica sem solução”.