Ana Paula Araújo: ‘O estupro é o único crime em que a vítima é que sente vergonha’

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Por Andréa Martinelli, compartilhado de Huffpost Brasil – 

Autora de “Abuso: a cultura do estupro no Brasil”, jornalista conta bastidores das entrevistas para o livro, resultado de 4 anos de pesquisas e conversas com vítimas, agressores e especialistas.

“A violência sexual faz parte da vida de todas nós desde muito cedo.” Essa é uma das conclusões da jornalista Ana Paula Araújo, autora do livro Abuso: A cultura do estupro no Brasil, lançado em outubro pela Globo Livros. Durante 4 anos, ela se debruçou sobre abusos e estupros que chocaram o País, conversou com vítimas, agressores, especialistas no tema – desde médicos a juristas – para tentar compreender por que, no Brasil, uma mulher é vítima de estupro a cada 8 minutos e, em grande parte, elas têm menos de 14 anos de idade.




Ns semana passada, o tema voltou a ser debatido de forma intensa após o caso da jovem Mariana Ferrer repercutir. A absolvição do acusado de estupro, a divulgação de vídeos da audiência do caso em que Ferrer é humilhada e a utilização do termo “estupro culposo” causaram revolta nas redes sociais. Além de expor fragilidades da Justiça em lidar com casos de violência de gênero, histórias como a de Ferrer são mais comuns do que se imagina.

“As mulheres precisam saber que a violência sexual está presente no dia a dia e às vezes é não é percebida. Muitas já me disseram que, lendo o livro, se lembraram de alguma situação da infância e que não entendiam o desconforto que sentiram na época como estupro”, conta Araújo em conversa por telefone com o HuffPost, realizada na semana anterior ao caso de Ferrer ir para o centro do debate.

O livro de Ana Paula conta com a pesquisa do jornalista Marcos di Genova, que acompanhou a âncora do Bom Dia Brasil nas viagens. Ela fez a pesquisa, apuração e escreveu os capítulos nos intervalos de sua rotina em coberturas especiais e apresentação na TV Globo.

LEO AVERSA/DIVULGAÇÃO
Ana Paula Araújo: “Eu sempre digo, bato sempre nesta tecla:  que o estupro é o único crime que a vítima é que sente vergonha.”

“Eu sempre digo, bato sempre nesta tecla: o estupro é o único crime que a vítima é que sente vergonha. E esse é um lado perverso desse pensamento machista que tenta jogar para a vítima a culpa de uma violência que ela sofreu. Tudo isso faz que a gente viva com medo, tira a nossa liberdade. E olha o quanto a sociedade como um todo perde com isso”, afirma Araújo.

Uma das histórias mais surpreendentes que a jornalista traz é a conversa com uma das 3 sobreviventes do caso de estupro coletivo na cidade de Castelo do Piauí, a 190 km da capital Teresina (PI) ,que aconteceu em 2015 e chocou o País. A quarta vítima morreu ao ser arremessada de um penhasco.

“Foi uma agradável surpresa. Eu encontrei ela bem. Na época da entrevista, ela estava se preparando para fazer o Enem, estava namorando – tem muitas vítimas que depois [da violência sexual] têm problemas em se relacionar, mas ela estava bem”, conta Ana Paula. “Vê-la assim só reforçou o que eu já tinha notado em outras entrevistas: quando a vítima encontra apoio da família, da sociedade, ela se recupera com muito mais facilidade.”

ADRIANO MACHADO / REUTERS
Mulher participa de protesto exigindo segurança para mulheres, justiça para vítimas de estupro e justiça para Mariana Ferrer, em 4 de novembro de 2020.

Algo que impressionou a jornalista durante a apuração foi o fato de que algumas sobreviventes tinham perdoado seus agressores, mas cultivavam rancor e mágoa das instituições — isso porque foram desacreditadas no processo.

“Quando entrevistei a jovem do Piauí, perguntei se ela ficou com alguma mágoa e ela disse que sim. Mas não era do agressor e sim, do promotor. Ele fez uma pergunta insinuando que elas tiveram a intenção de fazer sexo com os estupradores. Isso me chamou muito a atenção: como o descaso das instituições, a desconfiança, como tudo isso magoa demais a vítima.”

LEO AVERSA/DIVULGAÇÃO
Em conversa com o HuffPost, a jornalista conta detalhes da apuração, entre eles, como foi a experiência de entrevistar agressores condenados pelo crime de estupro.

Em determinado momento, a jornalista sai do lugar de observadora e conta um episódio que aconteceu com ela. “Eu não conheço uma mulher, eu duvido que uma mulher não passe por isso no transporte público, ou não vá passar em um momento da vida”, conta. “Eu estava voltando de ônibus da faculdade, bem cansada. Eu consegui sentar, encostei a minha cabeça na janela e adormeci. De repente eu sinto aquela mão na minha coxa e quando eu abri os olhos, assustada, era um homem me encarando com um rosto muito perto do meu. Eu fiquei apavorada, as pessoas em volta não fizeram nada”, recorda.

Na época, este tipo de conduta não era crime. Desde 2018, o Código Penal a reconhece como crime de importunação sexual como a prática de ato libidinoso contra alguém sem o seu consentimento “com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. É passível de pena de 1 a 5 anos de reclusão, se o ato não constituir crime mais grave.

DIVULGAÇÃO
Capa do livro “Abuso: A Cultura do Estupro no Brasil”, livro resultado de apuração e pesquisa de mais de quatro anos da jornalista Ana Paula Araújo.

Na entrevista ao HuffPost, a jornalista conta detalhes da apuração, entre eles, como foi a experiência de entrevistar agressores condenados pelo crime de estupro ao longo da pesquisa e como uma entrevista se tornou um resgate a duas meninas que eram violentadas pelo próprio pai, na Ilha de Marajó (PA).

Leia a entrevista completa:

HuffPost Brasil: O que te fez mergulhar nessa pesquisa tão intensa e completa, por 4 anos? Qual era seu objetivo no início?

Ana Paula Araújo: Foi por perceber que essa violência está na vida de todas nós. Quando eu comecei com a ideia do livro, foi bem na época da campanha “Meu Primeiro Assédio” e eu comecei a ver muitas mulheres falando sobre suas experiências. Conversei com amigas e percebi como a violência sexual faz parte da vida de todas nós desde muito cedo. No trabalho, na escola, dentro de casa, no transporte público, em festas, nas universidades, como a gente passa a vida inteira com medo; foi por isso que eu resolvi mergulhar nesse assunto. E o retorno que eu estou tendo mostra que eu atingi o meu objetivo, que era jogar luz sobre esse assunto para homens e mulheres. Eu acho que as mulheres precisam saber que a violência sexual está presente no dia a dia e às vezes não é percebida. Muitas mulheres já me disseram que, lendo o livro, se lembraram de alguma situação do passado, da infância, e que não entendiam o desconforto que sentiram na época como estupro; muitas me dizem “puxa, percebi que vivi algumas situação, bebi demais e achei que aquilo era culpa minha e hoje vejo que é estupro” e vejo alguns avanços entre os homens também. Eu espero que eles leiam e comecem a ter uma noção mais clara do que é consentimento, do que é o respeito aos limites das mulheres, que não existe essa história de “quando a mulher diz não está querendo dizer sim”.

A violência sexual faz parte da vida de todas nós desde muito cedo. No trabalho, na escola, dentro de casa, no transporte público, em festas, nas universidades, como a gente passa a vida inteira com medo.Ana Paula Araújo

Você relata uma situação pessoal com assédio no transporte público no livro…

Sim, eu conto uma história que aconteceu comigo no transporte público. Entre muitas histórias que aconteceram comigo essa eu escolhi contar porque eu acho que é bem representativa. Eu não conheço uma mulher, eu duvido que uma mulher não passe por isso no transporte público, ou vá passar em um momento da vida. Nesse episódio eu estava voltando de ônibus da faculdade, bem cansada. Eu consegui sentar, encostei a minha cabeça na janela e adormeci. De repente eu sinto aquela mão na minha coxa e quando eu abri os olhos, assustada, era um homem me encarando com um rosto muito perto do meu. Eu fiquei apavorada, as pessoas em volta não fizeram nada, parecia que nada estava acontecendo. Aí eu falei para ele: “tira a mão e levanta daqui”… Eu consegui reagir e ele obedeceu, mas ficou me encarando a viagem inteira. E eu fiquei com muito medo.

Hoje há uma percepção de que as pessoas estão menos intolerantes com essas atitudes, em especial, no transporte público. Você concorda?

Eu acho que sim, e que isso é um grande avanço. A gente tem visto em alguns casos de assédio no transporte público em que até alguns homens, inclusive, se mobilizam para ajudar a vítima, chamar a polícia, interromper aquele abuso; as mulheres estão mais conscientes, estão reagindo mais. Eu vejo como um dado positivo. E acho que a gente tem, sim, que falar no assunto, ainda mais porque desde 2018 a gente tem uma lei de importunação sexual no Brasil, que é específica para esses casos – ou seja, aquela encoxada no metrô lotado, que as mulheres estão acostumadas a enfrentar desde sempre, agora é crime. Estes homens são criminosos e podem ser denunciados e enquadrados dentro do nosso Código Penal.

Depois da experiência de apuração para o livro, você encontrou elementos específicos de como a cultura do estupro se manifesta especificamente no Brasil?

Acho que [está presente] no dia a dia, nesse pensamento machista de que a vítima tem culpa, de que a violência sexual não é “tão grave assim”, de manter uma postura que praticamente tolera este tipo de crime e não pune o agressor e duvida da vítima. Eu acho que essa é a parte mais grave. Ela parte de uma ideia de desvalorização da mulher que está presente na sociedade como um todo: de achar que homens são superiores, que mulheres são submissas. São as piadinhas machistas, os constrangimentos que as mulheres enfrentam no mercado de trabalho, nas cantadas absurdas nas ruas…

Um dos casos mais surpreendentes que você traz no livro é a conversa com uma das três jovens que sobreviveu do estupro coletivo em Castelo do Piauí, em maio de 2015 [na época, a quarta vítima morreu ao ser arremessada de um penhasco depois do estupro], que também chocou o País. Como ela está hoje e como foi a experiência de entrevistá-la?

O dia em que eu fui fazer a entrevista com ela foi um dia difícil. Logo cedo, pela manhã, que tinha ido fazer uma outra entrevista para o livro em um centro de menores infratores de Teresina (PI). Lá, eu conversei com um menor que tinha comandado um crime de estupro coletivo horroroso, contra uma mulher grávida. Ele ainda assassinou o marido da mulher na frente dela. E ele falava com uma naturalidade, com um jeito até meio afrontoso disso. Aquilo me deixou tão mal. Eu e o pesquisador do livro saímos de lá e ficamos uns 20 minutos sem conseguir falar de tão mal que nós ficamos. E, em seguida, eu tinha a entrevista com uma das sobreviventes do crime que aconteceu em Castelo do Piauí. E eu falei pra ele: “preciso voltar para o hotel e descansar, porque essa entrevista sugou a minha energia por completo. Eu estou exausta”. Aí eu fui para o hotel, descansei e depois fui entrevistar a menina, e foi uma agradável surpresa. Eu encontrei ela bem. Na época da entrevista, ela estava se preparando para fazer o Enem, estava namorando – tem muitas vítimas que depois [da violência sexual] têm problemas de se relacionar, mas ela estava bem. Vê-la assim só reforçou o que eu já tinha notado em outras entrevistas: quando a vítima encontra apoio da família, da sociedade, ela se recupera com muito mais facilidade. Ela teve acesso ao atendimento psicológico, a família apoiou, a mãe, o pai, o irmão, ela ganhou bolsa de estudo, isso deu muita força a ela. Eu encontrei ela bem. Soube há pouco tempo que ela estava casada com outro rapaz já, fazendo faculdade. Ela conseguiu retomar a vida dela. E lógico que este é um trauma que fica para sempre, uma amiga dela morreu nessa história, isso não vai mudar. Mas ela não se permitiu ser definida por aquela tragédia horrorosa. Isso me deu um alívio muito grande.

Vê-la assim só reforçou o que eu já tinha notado em outras entrevistas: quando a vítima encontra apoio da família, da sociedade, ela se recupera com muito mais facilidade.Ana Paula Araújo

Em um ponto da entrevista, ela relata que perdoou os agressores, mas não o promotor de justiça. O que isso pode dizer sobre como as instituições lidam com casos de violência sexual, e como as vítimas reagem a esse tratamento?

Olha, isso eu achei muito interessante. Foi uma das descobertas que eu tive durante essa apuração. Antes de entrevistá-la, eu tinha falado com uma outra vítima, em que o estuprador foi preso, mas que, na Justiça, a juíza, uma mulher, inocentou o agressor levando em conta a versão da defesa dele de que houve consentimento, sendo que tudo aconteceu após ele ter assaltado a vítima, uma coisa absurda. A vítima recorreu da sentença, e dez anos depois ela conseguiu vencer no Tribunal de Justiça de São Paulo.

Ela me contava com tanta indignação o que a juíza fez, que quando acabou a entrevista eu perguntei pra ela: ”é impressão minha ou você tem mais raiva da juíza do que do estuprador?”. E ela me respondeu, “muito mais raiva”. E eu fiquei um pouco sem entender aquilo. E quando eu entrevistei a jovem do Piauí, perguntei se ela ficou com alguma mágoa e ela disse que tinha uma mágoa, sim, mas do promotor. Ele fez uma pergunta insinuando que elas queriam fazer sexo com os estupradores. E isso me chamou muito a atenção: como o descaso das instituições, a desconfiança, o descrédito, como tudo isso magoa demais a vítima.

E uma delas [vítima] me deu uma explicação, ela disse: “do bandido a gente pode esperar tudo, bandido é bandido. Mas um policial, um promotor, um juiz, um médico, esses profissionais que estão ali para te atender em uma situação como essa, eles tinham que ter obrigação de prestar o melhor atendimento, de acolher melhor essas vítimas e não fazer com que elas sejam vítimas de novo”.

Uma das histórias mais marcantes do livro é a da família da Ilha de Marajó, no Pará, que você visitou junto com o pesquisador, uma freira e um delegado. Me pareceu que, naquele momento, você saiu um pouco do lugar de observadora e participou ativamente de uma espécie de resgate das filhas do casal, que eram abusadas pelo pai. Você pode contar como foi essa experiência?

Nossa, foi muito complicado porque a gente, como jornalista, está acostumada a relatar, acompanhar, questionar… E não a interferir nos fatos e mudar a vida das pessoas. Só que naquela situação eu me vi com duas meninas, adolescentes, contando que eram estupradas sistematicamente pelo próprio pai. Foi assim: eu estava conversando com elas na cozinha, junto com a freira – a irmã Henriqueta Cavalcante e que fazia parte da comitiva que ia com a gente – enquanto o pai estava na varanda conversando com o pesquisador do livro e o delegado que acompanhava a gente. Foi quando a gente relatou para o delegado o que as vítimas falaram – e ele disse “tá bom, se vocês quiserem a gente pode tirar essas meninas daqui agora”. E eu perguntei para elas se elas gostariam de sair dali. A mãe disse que também queria, e aí eu fui lá no nosso barquinho perguntar se cabia todo mundo – porque era um barquinho pequeno o que a gente estava para chegar até o local – tinha espaço suficiente, e eu falei para elas “peguem as coisas de vocês e vamos”.

Isso me deixou extremamente tensa. Eu fiquei completamente desconfortável e fiquei na dúvida se eu deveria fazer aquilo, mas na hora me pareceu não ter outra alternativa. O mais triste dessa história é que a gente foi para outro distrito, prestou queixa, eu fui testemunha, a irmã Henriqueta também, o pai foi preso. Mas depois teve uma outra audiência em que ele foi solto, sendo que a promotoria não participou, eu não fui chamada para depor, nem a freira. Agora provavelmente ele está de volta cometendo os mesmos crimes. Ainda existem muitos gargalos da Justiça, ainda mais no caso de violência sexual. É um crime que não tem testemunha, que não deixa marcas. Às vezes demora para procurar a polícia por causa do trauma, e quando procura as possíveis marcas já não estão mais lá. É um crime mais difícil de provar mesmo e ainda há uma tendência na nossa Justiça, nessa situação de palavras da vítima contra o agressor, privilegiar a palavra do homem.

O estupro é o único crime que a vítima é que sente vergonha. E esse é um lado perverso desse pensamento machista que tenta jogar para a vítima a culpa de uma violência que ela sofreu.Ana Paula Araújo

Como parte da pesquisa para o livro, você conversou com diversos homens condenados e presos pelo crime de estupro. Você julgou importante ouvi-los durante a apuração? E o que você descobriu?

O rapaz do centro socioeducativo para menores foi o que me encarou mais, que me olhou mais. De modo geral, os acusados e condenados de estupro ficam segregados dentro da cadeia porque os outros presos têm ódio mortal deles. Eles têm que ficar em uma ala separada e se comportam extremamente bem dentro da cadeia. E o que eu notei de comum no comportamento deles é que quando eles vinham falar comigo, todos olhavam para baixo, e os que admitiam o que tinham feito diziam que não sabiam por quê. Falavam que eram doentes, que tinham problemas. Mas a questão é que eles acham que são doentes só depois que são presos, né? Por que antes de cometer uma barbaridade ninguém procurou ajuda? Uma coisa que eu noto é que, embora todos, na hora, se mostrem arrependidos, o comportamento fora da cadeia é outro completamente diferente, tanto que alguns deles estão cumprindo a terceira pena pelo crime de estupro. Ou seja, foram presos, foram soltos, voltaram a cometer esses crimes. Eu tenho relatos de vítimas contando que um estuprador que foi solto voltou para a mesma comunidade e foi super bem recebido por todo mundo e ainda ficava mandando recado ameaçando as vítimas que denunciaram.

A lei que cria o cadastro nacional de condenados por estupro foi sancionada no início de outubro. Segundo o texto, o banco de dados irá conter a descrição de características físicas, impressão digital e perfil genético, fotos, local de moradia e trabalho de condenados pelo crime de estupro. Você acha que esse tipo de medida pode proteger as vítimas de alguma forma?

O cadastro foi sancionado, pelo que eu entendi, como uma ampliação de um cadastro que já existe, mas não foi explicado ainda quem vai ter acesso a esse cadastro, a essas informações, como elas serão usadas. Ainda falta decidir muita coisa para ver se isso realmente vai ser uma medida que vai trazer uma proteção das vítimas e fazer que esses criminosos não sejam reincidentes nestes crimes. Agora, medidas de ressocialização não há em nenhum tipo de crime dentro da própria cadeia, e imagina para esse tipo de crime que as pessoas odeiam, né? Acho que os condenados por estupro vão ser os últimos a talvez, algum dia, ter algum tipo de ressocialização.

A única coisa meio parecida que eu encontrei e que parece que tinha um bom resultado foi uma iniciativa do TJ-SP, mas que também já acabou. Era um curso sobre violência de gênero, direcionado para homens acusados de abusar de mulheres no transporte público. Era bem interessante. Eu acompanhei algumas reuniões. Ali, eles tinham uma parte da pena convertida. O curso era ministrado aos domingos, e alguns iam escondido das esposas, por exemplo. Eu achei uma iniciativa bem interessante, bem válida, mas como foi pouco tempo, e com uma amostra pequena de pessoas, não dá para saber exatamente a eficácia diss. Tem um dado de que entre aqueles que fizeram o curso nenhum voltou a reincidir, mas não dá pra saber se é isso mesmo ou se apenas não foram pegos, entende? De qualquer maneira, eu acho que este era um começo positivo. Mas foi um projeto que acabou por falta de verba.

Como os agressores presos lidavam com a sua presença ali?

Todos ficavam muito envergonhados de estarem ali conversando comigo. Mas também sinto que é um pouco daquela vergonha só porque foi pego, sabe? Alguns tentando me convencer de que são boas pessoas, de que têm família, que têm esposa, filhos. Um deles me contou que a esposa descobriu o que ele tinha feito, e hoje lutava para reconquistar a confiança dela. Todos sempre se mostraram muito arrependidos.

A sociedade como um todo tem que começar a se questionar, a parar de culpar a vítima, ter mais empatia, entender um pouco o mecanismo perverso que é jogar ainda mais culpa em cima de uma pessoa que passou por um trauma tão horrível.

Lendo o livro, fica claro que a violência de gênero de modo geral não só é tolerada, mas questionada. Alguns episódios recentes também deixaram isso claro como, por exemplo, o caso do jogador Robinhodo comediante Marcius Melhem e outras denúncias de estupro e assédio sexual por líderes religiosos e espirituais. Qual é a responsabilidade da sociedade ao não tolerar crimes de violência de gênero?

Acho que isso passa por educação, desde ensinar a meninos e meninas os conceitos básicos de respeito aos limites de sexualidade saudável e de consentimento. E até hoje, para os adultos, nas faculdades de direito, nas faculdades de medicina, nas faculdades que formam médicos, delegados, juízes, deveria existir uma formação em violência de gênero. Porque são profissionais que vão refletir essa noção no momento em que eles forem atuar como profissionais. E a sociedade como um todo tem que começar a se questionar, a parar de culpar a vítima, ter mais empatia, entender um pouco o mecanismo perverso que é jogar ainda mais culpa em cima de uma pessoa que passou por um trauma tão horrível. Uma face muito cruel disso é como a sociedade é machista e culpa a vítima, a própria vítima incorpora isso e muitas vezes se sente culpada. Eu sempre digo, bato sempre nesta tecla: o estupro é o único crime que a vítima é que sente vergonha. E esse é um lado perverso desse pensamento machista que tenta jogar para a vítima a culpa de uma violência que ela sofreu. Tudo isso faz que a gente viva com medo, tira a nossa liberdade. E olha o quanto a sociedade como um todo perde com isso.

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