Ângela Carrato: Tiradentes e seus ideais esquartejados de novo por Zema, Temer e Moro

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Ângela Carrato: Tiradentes e seus ideais esquartejados de novo por Zema, Temer e Moro

Na foto: Tiradentes Esquartejado, pintura a óleo de Pedro Américo, concluída em 1893. E novos Silvérios dos Reis: Romeu Zema, Michel Temer e Sergio Moro. Fotos: Wikipedia, reprodução Sérgio Lima/Poder 360 e Agência Senado

Tiradentes e o léxico da ideologia golpista




Por Ângela Carrato*

Engana-se quem acredita que a decisão do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), de atribuir a Medalha da Inconfidência, no seu grau máximo, ao golpista Michel Temer tem a ver apenas com suas predileções pessoais.

Claro que ela envolve a sua pretensão de ser candidato à presidência da República em 2026, porém o objetivo é mais ambicioso.

Além de Temer, Sérgio Moro foi outro agraciado. Aos dois se somam algumas dezenas de políticos, integrantes do Judiciário e personalidades conservadoras que receberam distinções em graus variados.

Para não ficar evidente o caráter dado à condecoração, alguns nomes de figuras progressistas também entraram na lista.

Essa ação de Zema faz parte do projeto das forças conservadoras brasileiras (direita e extrema-direita) de recontarem à sua maneira a história recente do país e tentarem tirar proveito disso.

Projeto que é materializado na busca pela construção de imagens mais palatáveis para desgastadas figuras públicas e de dotar de novo sentido conceitos, palavras e verbos que têm marcado o cotidiano da população brasileira.

É o caso do termo golpista, popularmente associado a Temer e a Moro, pelo papel que tiveram na destruição da democracia brasileira e na abertura de espaço para o surgimento de uma figura abjeta como Jair Bolsonaro.

É o caso de palavras como corrupção, deus, pátria, família e símbolos nacionais que foram apoderadas pelos que se auto intitulam “patriotas”, “democratas” e “cidadãos de bem”.

Pessoas que vem disseminando negacionismo contra a ciência e discurso de ódio, que estão na raiz de milhares de mortes pelo vírus da covid-19, da destruição do meio ambiente e da violência contra mulheres, negros, indígenas, escolas e crianças.

As investigações envolvendo os episódios terroristas do 8 de janeiro estão contribuindo para desmascarar estes falsos patriotas, mas exatamente aí que ganha corpo essa tentativa para influir na política, através de nova conotação para nomes como Temer e Moro.

Situação que passa, entre outras coisas, por dissociá-los de Bolsonaro.

Mas o que Tiradentes tem a ver com isso?

A Medalha da Inconfidência é a mais alta comenda concedida anualmente pelo governo de Minas Gerais no dia 21 de abril, data do enforcamento de Tiradentes e marco do movimento de independência que teve como lugar a cidade de Ouro Preto, no século XVIII.

Criada em 1952 pelo governador Juscelino Kubitscheck, ele institui que sempre nesta data a capital do Estado deveria simbolicamente ser transferida para Ouro Preto.

A comenda possui vários graus. Em geral são agraciados políticos, juristas, magistrados, empresários, professores, lideranças sindicais, intelectuais e artistas. Nomes que, supostamente, tiveram atuação em defesa de Minas Gerais e do Brasil.

A luta dos inconfidentes contra a metrópole portuguesa entrou para a história do Brasil como um dos seus momentos mais altos.

Não por acaso, Tiradentes, seu mártir, foi erguido à condição de herói nacional e o lema dos revoltosos, a frase latina libertas quae sera tamem (liberdade ainda que tardia), figura na bandeira de Minas Gerais.

Dos heróis da Inconfidência, Tiradentes era o único que não pertencia à elite. Simples alferes vinha de família pobre e ganhava a vida arrancando dentes. Daí a alcunha que passou a acompanhá-lo.

Sua indignação contra a coroa portuguesa tem a ver com a vida e as diversas atividades que exerceu a exemplo de tropeiro, minerador, comerciante, militar e ativista político.

O lugar que cabe a Tiradentes na história do Brasil é o de herói que deu a vida na luta contra os poderosos e pela independência, que viria a acontecer só bem mais tarde, em 1822.

Mesmo com a independência, Tiradentes permaneceu relativamente obscuro, pois o país continuou sendo uma monarquia regida pela Casa de Bragança, e os dois imperadores, Pedro I e Pedro II, eram descendentes de D. Maria I, contra a qual Tiradentes conspirara e que havia assinado sua sentença de morte.

Só com o advento da República, em 1899, que Tiradentes passou a ser considerado herói nacional.

É importante lembrar que vê-lo como mártir foi uma postura dos republicanos com a intenção de ressignificar a identidade brasileira.

Se a memória de Tiradentes foi reverenciada pelo progressista JK, o marechal golpista Humberto de Alencar Castelo Branco, em 1965, durante o primeiro governo da ditadura militar, tornou 21 de abril feriado nacional e Tiradentes oficialmente Patrono da Nação Brasileira.

Isso deixa nítido como os setores conservadores tentaram mudar o sentido da luta e da figura de Tiradentes. De inimigo da opressão, virou patrono nacional nas mãos dos opressores, que tentavam, assim, limpar suas próprias imagens.

Nada mais distante da luta de Tiradentes do que o golpe de 1964, que instituiu uma ditadura, prendeu, torturou e matou seus opositores e subordinou o país aos interesses dos Estados Unidos.

Daí palavras como independência, liberdade política e liberdade religiosa terem sido tão caras aos inconfidentes, amantes do conhecimento e fortemente influenciados pelos ideais iluministas.

É importante observar, por outro lado, que a disputa pelo controle do significado de algumas palavras em nossa língua não é de agora, mesmo que só recentemente tenha começado a se falar em “guerra cultural” ou “léxico da ideologia conservadora”.

É nesse quadro que deve ser entendida a disputa travada pelas forças das quais Zema faz parte.

Disputa que envolve a apropriação de símbolos, de heróis, de conceitos e de palavras que representam avanços científicos e civilizatórios, verdadeiros marcos de lutas populares, e procurar dotá-las de sentido inverso. Ou de ressignificá-las segundo a conveniência destas forças.

Quando o tempo já havia dirimido as dúvidas da maioria da população de que o movimento militar de 1964 foi um golpe contra a democracia e não uma revolução como sempre apregoaram militares e forças conservadoras, entra em cena outro golpe, o desferido contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016.

Golpe que os setores conservadores insistem em chamar de impeachment, mesmo não tendo havido crime de responsabilidade.

Como não seria aceitável dizer que a deposição de Dilma teve a ver com o descontentamento destas forças em relação a perdas de seus privilégios e com a cobiça despertada no exterior pelo descobrimento do pré-sal, foi essencial venderem para a sociedade a ideia de que representam “o lado certo da história”, de que “são democráticos”, que seus adversários não passavam de “corruptos”, “incompetentes”, “gastadores” e “inimigos de Deus, da pátria, da família”.

Era fundamental travestir o golpe em impeachment.

Temer foi o vice que conspirou contra Dilma e que, uma vez no poder, passou a implementar um programa de governo oposto ao eleito pela população.

A tal “Ponte para o Futuro”, ao contrário de reduzir as desigualdades e garantir o desenvolvimento, jogou o país nas garras do neoliberalismo mais voraz, cujas consequências a população brasileira ainda sente na pele.

Estão aí os juros mais altos do mundo, as privatizações do patrimônio público a preço de banana e a destruição dos direitos trabalhistas e previdenciários. De sexto país no ranking mundial, o Brasil despencou para a 12ª colocação.

Foi a Operação Lava Jato e seu então todo poderoso juiz Sérgio Moro quem aprofundou o processo golpista, com a condenação e prisão, sem provas, do na época ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, viabilizando assim a vitória nas eleições de 2018 de um ex-capitão, defensor da tortura e de torturadores.

Além de ter sido juiz parcial, Moro atendeu aos interesses de setores dos Estados Unidos e seus podres não param aí.

O advogado Rodrigo Tacla Durán, perseguido por Moro durante a Operação Lava Jato, deve depor nos próximos dias e, ao que parece, tem provas contundentes envolvendo corrupção grossa do ex-juiz e da chamada “República de Curitiba”.

Com toda razão Lula, agora, pela terceira vez, presidente da República, tem dito que foi Moro e sua campanha contra o PT, a Petrobras e as empreiteiras nacionais, quem possibilitou a vitória de Bolsonaro.

Foi o discurso de criminalização da política feito por Moro que possibilitou também o surgimento de algumas figuras deploráveis que povoam, em todos os níveis, as casas legislativas do país.

Como a inelegibilidade de Bolsonaro é dada como certa, a direita e a extrema-direita estão fazendo de tudo para reabilitar nomes que consideram importantes. Pessoas que acreditam possam funcionar como catalizadores e alavancas para projetos conservadores e golpistas em curso.

O leitor/leitora que chegou até aqui deve estar se perguntando: mas será que Zema, que não sabe nem quem é Adélia, tem capacidade para articulações deste porte?

Ele obviamente não, mas por trás dele estão poderosas entidades, think tanks, instituições e corporações nacionais e internacionais que trabalham com o que há de mais sofisticado em termos de métodos para a conquista de corações e mentes.

Entidades que apostam suas fichas em qualquer um que possa representar seus interesses agora e no futuro.

Zema, como seus colegas governadores de extrema-direita do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, e de São Paulo, Tarcísio de Freitas, estão entre esses nomes.

Não por acaso esses senhores venceram nos estados mais importantes da federação.

Uma solenidade marcada pelo simbolismo pátrio como a Inconfidência Mineira não deixa de ser oportunidade ímpar para tentarem vender a ideia de que golpistas são democratas e que esses inimigos do Brasil e do povo brasileiro são os verdadeiros patriotas.

E os menos avisados talvez nem percebam que Tiradentes e seus ideais estão sendo esquartejados outra vez.

P.S. Se acontecer a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito Mista (CPIM) sobre os atos golpistas de 8 de janeiro, ela será palco privilegiado para esse tipo de embate que acabo de abordar.

De um lado os fatos, comprovados por testemunhos, depoimentos e imagens. De outro, os golpistas valendo-se de fake news, distorções e manipulações, tentando convencer a sociedade brasileira de que o governo recém-empossado teria sido conivente com um golpe contra si mesmo.

Qualquer semelhança com quem atribui Medalha da Inconfidência a Temer e Moro por relevantes serviços prestados à pátria não será mera coincidência.

*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.

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