Em uma das mais célebres cenas da literatura brasileira, a cachorra Baleia, já golpeada pelas intempéries da vida no Sertão, é sacrificada por Fabiano. Seu momento derradeiro, marcado pela angústia de ter sido violentada por seu maior companheiro, é interrompido por uma súbita serenidade. É tomada por um desejo intenso de dormir e sonha com a vida após a morte, sua particular ideia de paraíso: acordar em mundo povoado de preás.
Por André Araujo e imagem de Inês, compartilhado do Suplemento Pernambuco
Ponto alto do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, a morte da cachorra Baleia é uma das cenas analisadas no livro Animalidades, de Maria Esther Maciel (UFMG), lançado pela Editora Instante. O livro da autora, publicado com um cuidado editorial de altíssimo nível, com destaque para o primoroso projeto gráfico de Fabiana Yoshikawa, dá prosseguimento às investigações de Maciel cujos primeiros resultados haviam sido publicados em Literatura e animalidade (Civilização Brasileira, 2016). Nessa nova investida no tema, a autora se preocupa em mapear um conjunto de animais da história da literatura, destacando suas vidas e perspectivas singulares, além das operações literárias promovidas pelos escritores e escritoras responsáveis por lhes dar voz.
No caso de Baleia, Maciel resiste à interpretação de que o sonho seria apenas um gesto de humanizar a cachorra, como se fosse um animal característico das fábulas morais de Esopo, em que não humanos operam como ventríloquos para nossas questões. Baleia demonstra como a animalidade e a humanidade são capazes de uma espécie de contágio, demonstrando os limites das categorias que insistem em afastar, e diminuir, a vida subjetiva dos animais. “[Graciliano] constrói uma personagem que, pela estreita proximidade com os humanos, tem sua animalidade contagiada por essa proximidade, na mesma proporção em que a animalidade dos humanos se intensifica, mas sem demarcar os ‘próprios do homem’ e os ‘próprios do animal’”, escreve Maciel.
Além de Baleia, somos apresentados, no livro, a uma coleção de bichos particulares, com nome próprio e personalidade destacada, que povoam a literatura mundial. Desde o clássico cão-filósofo Quincas Borba, de Machado de Assis, passando pelo cachorro Ulisses, animal de estimação de Clarice Lispector que se tornou personagem no livro infantil Quase de verdade e pelo próprio cão de Ulisses na Odisseia, Argos − que morre logo após reconhecer o herói em seu retorno à Ítaca −, o bestiário compilado por Maciel apresenta questões que deslocam nossa perspectiva acerca das possibilidades da vida, da subjetividade e da imaginação dos animais não humanos.
Partindo de uma sólida reflexão filosófica, que situa historicamente as formas pelas quais os animais foram enquadrados como categoria hierarquicamente inferior ao humano, Maciel busca na literatura formas de relação entre pessoas e bichos que não sejam marcadas por uma subjugação, na qual um dos polos serve sempre como receptáculo para as características do outro. Em uma engenhosa construção teórica, a autora chega a caracterizar escritores e escritoras do que chama de “zooliteratura” como espécies de xamãs, tal como caracterizados pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Nas culturas ameríndias, haveria uma troca de perspectivas: o xamã seria capaz de assumir a perspectiva do outro de forma a conhecê-la – e a si mesmo. Maciel escreve que “os poetas/escritores poderiam ser tomados como aqueles que, ao entrarem imaginariamente em um corpo não humano, também promoveriam esse diálogo interespécies traduzindo em palavras o ponto de vista apreendido desse outro”.
Animalidades integra uma tendência do mercado editorial brasileiro que dá grande atenção a questões do mundo não humano. Poderíamos destacar obras importantes como A cosmopolítica dos animais, de Juliana Fausto; O que diriam os animais? e Autobiografia de um polvo, ambos de Vinciane Despret; além de Manifesto das espécies companheiras e Quando as espécies se encontram, de Donna Haraway. A perspectiva inovadora dessas autoras, que estão na ponta de lança do pensamento contemporâneo através dos chamados estudos multiespécies, entra em consonância com a obra de Maria Esther ao tomar os animais jamais como objetos (tanto do ponto de vista científico como também filosófico) e sim como dotados de uma agência que nos é cada vez mais evidente. Perante as mudanças climáticas e a crise ambiental que se avizinha em nosso horizonte, somos cada vez mais obrigados a pensar no mundo da “natureza” não mais como um fundo estável e imutável onde se desenrolariam os dramas humanos dignos da literatura, mas também como um elemento central da construção do nosso mundo. Estamos sempre fazendo comunidade com os não humanos, concordaria Maciel, até mesmo quando somos cruéis ou indiferentes em relação a eles.
A releitura de textos literários sob o prisma da “zooliteratura” não trata apenas de mapear os bichos presentes na ficção, mas também de trazer à frente uma forma única de reconstruir a tradição ocidental caracterizada por tornar os animais ora objetos, ora espelhos do humano. Especular acerca da vida individual dos bichos, dentro de seus limites, implica tornar essas vidas em algo não imediatamente descartável, fazer da animalidade (e dos bichos em sua singularidade) vidas que importam. Também implica criar estratégias e instrumentos literários capazes de dar conta desse processo de escrever diante dos bichos, para além das convenções limitadas da ficção unicamente preocupada com a perspectiva humana.
Maria Esther Maciel ilustra de maneira muito instigante esse desafio ao analisar o livro de Yoko Tawada, Memórias de um urso-polar (Editora Todavia). No romance, uma espécie de zoo(auto)biografia para a pesquisadora, acompanhamos Knut, um urso-polar que foi abandonado pela mãe e adotado pelo mundo humano. Além da narrativa de Knut, que em um gesto de engenhosidade começa seu relato em terceira pessoa e gradativamente passa à primeira, quase como se conquistasse a sua subjetividade literária, temos também uma autobiografia de sua mãe e avó, costurando uma profunda história familiar das relações entre ursos e humanos. A construção narrativa de Tawada, ao criar uma autobiografia na voz de não humanos, é capaz de recolocar as questões acerca da autoficção e da construção literária do Eu por meio das escritas de si em uma outra chave, abrindo possibilidades para novas especulações acerca da forma pela qual somos capazes de falar em nossa voz ou na voz do outro.
Em Animalidades, Maria Esther Maciel ainda relê autorias célebres da nossa literatura sob o ponto de vista de uma escrita animal. Assim, as obras de Lispector, Drummond e Hilda Hilst são recolocadas no debate literário sob nova perspectiva, a partir de suas zoopoéticas, criando uma ressonância com autores e autoras contemporâneos como Nicodemos Sena, Olga Savary, Astrid Cabral, Sérgio Medeiros, Josely Vianna Baptista e Wilson Bueno.