Por Felipe Betin em El País –
ONG lança relatório em que fala sobre aumento da violência e dos homicídios no Brasil. Entidade culpa o Estado o brasileiro por sua omissão e responsabilidade em mortes
A ONG Anistia Internacional, uma das principais defensoras dos direitos humanos no mundo, apresentou nesta quarta-feira seu relatório anual sobre o Brasil e outros países e lançou uma dura mensagem a respeito da intervenção federal decretada no último dia 16 pelo presidente Michel Temer (MDB) no Rio de Janeiro. “Acreditamos que é uma medida inadequada e extrema que coloca em risco a vida da população”, argumentou Jurema Werneck, diretora-executiva da organização no Brasil, durante a apresentação do documento.
A declaração de Werneck foi logo emendada por Renata Neder, coordenadora de pesquisa do grupo: “O ministro da Justiça acaba de dizer que vivemos uma guerra assimétrica, avisando que haverá mortes e que isso é um dano colateral inevitável. O general Villas Boas pediu para que não houvesse uma comissão da verdade no futuro. Existe uma predisposição de que graves violações dos direitos humanos serão cometidas”, alertou.
Neder ainda explicou que o decreto de Temer “é amplo, impreciso, deixa inúmeras brechas e incertezas”. Não explica, por exemplo, como instituições como a Assembleia Legislativa, o Ministério Público estadual ou a Defensoria vão funcionar. “Política de segurança não se faz sem um plano muito concreto”. Ela acredita ainda que a aprovação no ano passado do projeto de lei que prevê que a Justiça Militar julgue homicídios cometidos pelo Exército durante operações de segurança mostra que a intervenção já estava sendo costurada pelo Governo. E criticou a narrativa de guerra adotada pelo Governo: “Numa guerra, o objetivo não é proteger as pessoas. É eliminar o outro. Quem vai ser eliminado? O jovem negro, as mulheres da periferia? Não aceitamos esta narrativa. Temos um problema relacionado ao crime organizado e precisamos de políticas focadas na prevenção, na investigação, na inteligência, na proteção das pessoas, inclusive dos policiais no exercício de suas funções”.
Papel crescente das Forças Armadas
Em seu relatório, elaborado antes da intervenção ser anunciada, a Anistia explica que ao longo de 2017 as “Forças Armadas foram cada vez mais designadas a cumprir funções policiais e de manutenção da ordem pública”. Diz ainda que as “autoridades não adotaram medidas para reduzir a taxa de homicídios, que permaneceu alta para jovens negros”. E que “o número de homicídios aumentou nas grandes cidades, sobretudo no Nordeste”. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 61.619 pessoas foram mortas em 2016, recorda o documento. O Estado brasileiro, disse Werneck, é “duplamente responsável pela crescente violência”: em primeiro lugar por sua omissão ao não implementar políticas públicas e falhar na hora de investigar os crimes; em segundo por ser ele mesmo o responsável pelo alto numero de homicídios, cometidos por policiais em serviço.
O estudo lembra ainda que há um ano o Ministério da Justiça anunciou seu Plano Nacional de Segurança Pública, “que deveria se concentrar na redução dos homicídios, no enfrentamento do tráfico de drogas e numa revisão do sistema prisional”. Entretanto, diz o relatório, “um plano detalhado e abrangente jamais foi apresentado ou implementado, e a situação da segurança pública se deteriorou durante o ano”. Há cerca de um ano, após uma série de rebeliões e chacinas em penitenciárias hiperlotadas e controladas por facções criminosas prometeu criação de 10.000 novas vagas em prisões em todo o país. Mas nenhuma nova vaga federal foi criada desde então, segundo reportagem publicada pelo EL PAÍS.
O relatório é especialmente duro sobre as forças de segurança, ao lembrar que “as operações policiais em favelas e áreas marginalizadas geralmente resultaram em tiroteios intensos e mortes”. Os dados sobre quantas mortes foram causadas pela polícia são imprecisos, mas indicam um aumento em todo o Brasil: foram 148 pessoas mortas no Ceará até novembro do ano passado, 494 em São Paulo até setembro; e 1.035 no Rio de Janeiro — considerado o lugar onde a polícia mais mata e também mais morre — até novembro. Só no Rio, 6.731 morreram de forma violenta em 2017, uma taxa de 40 mortes para cada 100.000 habitantes, segundo os dados da Secretaria Estadual de Segurança.
O relatório lembra alguns casos de operações em favelas do Rio que resultaram em mortes: em 13 de fevereiro, durante uma incursão policial na favela do Chapadão, quatro pessoas foram mortas por policiais militares e várias ficaram feridas; em agosto, pelo menos sete pessoas foram mortas pela polícia durante uma série de incursões policiais que se prolongaram por vários dias na favela do Jacarezinho; em 11 de novembro, sete homens foram mortos durante uma operação de segurança conjunta da Polícia Civil e do Exército em São Gonçalo — a autoria das mortes ainda não foi esclarecida.
O estudo também cita casos que ocorridos em São Paulo e no Espírito Santo. Entretanto, não aborda o alto número de mortes de agentes policiais e nem oferece números. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou no ano passado que, em 2016, o Rio enterrou um policial a cada dois dias. Neder, a coordenadora de pesquisas da Anistia, explica que a maior parte dos PMs mortos estavam fora de serviço e cobrou uma investigação por parte das autoridades. Também indagou se aqueles que morreram em serviço estavam bem equipados ou preparados para a missão e disse que é responsabilidade do Estado a proteção dos agentes.
O relatório também abordou outros assuntos relacionados aos direitos humanos no Brasil, como as rebeliões nas penitenciárias em vários Estados que resultaram em ao menos 123 mortes: 64 no Amazonas, 31 em Roraima, 26 no Rio Grande do Norte e duas na Paraíba. O sistema prisional, diz a Anistia, “continuou superlotado”, com 727.000 pessoas “em condições degradantes e desumanas”. A ONG lembrou ainda que 40% delas estavam detidas provisoriamente. A organização criticou ainda o decreto emitido pelo Ministério da Justiça que altera o processo de demarcação de terras, “tornando-o ainda mais lento e vulnerável às pressões dos proprietários rurais”.