“Anora”: rescisão de vínculos e consciência de classe

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Por Bruno Marra, compartilhado do Blog do Boitempo

[Atenção, spoilers na pista. ]




Se em Projeto Flórida, longa-metragem de 2017, o cineasta estadunidense Sean Baker retrata com primor o pesadelo do “sonho americano” nos arredores de uma Disney World proibida para a sua pobre vizinhança, ou ainda, se em Red Rocket (2021) esse mesmo sonho é retratado como um wet dream parasitado pela monetização do prazer — em que o protagonista, ex-ator pornô, enxerga na jovem namorada uma oportunidade de negócios —, Anora (2024), oitavo longa-metragem do diretor, dedica-se a fantasiar o American Dream, cada vez menos crível, como uma salvação advinda do outro lado da antiga cortina de ferro (a Rússia, afinal, é não apenas a terra natal da avó de Anora com também do “príncipe encantado” Vanya). O desfecho não poderia ser outro: num momento histórico de expectativas reduzidas, em que até mesmo conquistas sociais mais básicas tornam-se “privilégio” de alguns poucos, sua protagonista amarga a terrível descoberta de que nem mesmo os clássicos dispositivos de controle e subjugação, como o matrimônio e os antigos vínculos trabalhistas, permanecem necessários aos detentores de poder.

No artigo intitulado É preciso salvar Anora de seu criador, Alysson Oliveira e Patrícia de Aquino sugerem que a obra de Baker recairia nos mesmos clichês de gênero dos quais o cineasta teria buscado escapar, adotando um “male gaze” que retrataria os corpos femininos como simples mercadorias. Gostaria de defender aqui uma outra leitura, a contrapelo, buscando notar como Baker parece justamente subverter os clichês ideológicos desse olhar masculino, permitindo-nos vislumbrar, por entre as fissuras da própria representação fetichista, um complexo retrato da atual relação entre trabalho, afeto e luta de classes.

Imagem: Divulgação.

Anora, a nora?

Comecemos notando o vínculo entre as personagens da trama: em uma família estruturada como empresa (onde o posto gerencial encontra-se já reservado, de berço, ao jovem Vanya), a nora, de classe social inferior, só pode tomar parte naquele arranjo como “prestadora de serviços”, em regime “PJ”, não sendo admitido qualquer vínculo (contratual) entre ela e aqueles que usufruem de seus serviços. Assim, toda a trama do filme se dá como uma grande saga em busca da anulação do vínculo jurídico assinado pelo herdeiro imaturo. O longa de Baker poderia funcionar — e a filmografia pregressa do diretor parece nos permitir esta ambiciosa leitura — como uma grande alegoria do atual processo histórico de crescente desregulamentação dos direitos sociais e trabalhistas. Nos EUA de Baker, esse processo vem sendo marcado, há tempos, por desiguais relações trabalhistas arbitradas conforme as legislações de cada estado da federação; em nosso país, ele veio culminar no perverso desmanche da CLT, acrescido da já conhecida violência de classe a que, infelizmente, estamos acostumados.

Toros, o capanga-babysitter, em determinado momento da narrativa precisa deixar um evento familiar (pessoal) para resolver os problemas da família de seu patrão. Ele abandona um batizado, em que era padrinho, para anular um matrimônio que não conta com a benção de seus “acionistas sêniores”. A família do magnata russo é uma dinastia empresarial e aquele certificado de casamento “fast-food” em Las Vegas, precedido pelo pagamento de serviços sexuais e pela exigência de exclusividade, precisaria ser anulado, tal como um contrato danoso aos interesses da empresa. Cabe, a partir de então, aos subalternos (noiva inclusa) limpar a bagunça deixada pelo patrãozinho — o herdeiro e seus pais querem apenas o serviço feito, e não à toa permanecem fora de quadro durante a maior parte da trama, enquanto os empregados se digladiam para resolverem o imbróglio. A faxineira da mansão até recebe uma remuneração adicional em função do trabalho dobrado.

Imagem: Divulgação.

Nos breves intervalos desse “job” sem jornada fixa, Baker analisa o florescimento de um laço afetivo — tão improvável quanto uma flor no asfalto — entre a noiva-PJ e o capanga subcontratado (último na hierarquia dos serviçais da força bruta). Esses dois personagens vivem um amor de “viração”, improvisado com a ajuda daquilo que estiver à mão: a mordaça é oferecida por ele como um cachecol protetor do frio, o anel (capricho do playboy imaturo) se transforma no símbolo de um afeto genuíno: a classe trabalhadora tenta extrair alguma vida das ruínas, reaproveitando os destroços que o consumo desenfreado vai deixando pelo caminho.

O desfecho é doce-amargo: concluído o serviço, o capanga e a prostituta voltam para casa, mas ela não consegue demonstrar seu real afeto por meio do beijo durante o ato sexual (serviço prestado por ela diariamente, fonte de sua renda) e o corpo, machucado e exausto, acaba pedindo ajuda. O que ela pode oferecer, como símbolo genuíno de sua entrega afetiva, é o choro — que cliente algum quer ouvir —, partilhado ali com alguém que, tal como ela, só tem como ferramenta de trabalho o próprio corpo, em sua material brutalidade. Lá fora faz frio, enquanto os dois se espremem na desolação de um carro velho.

Imagem: Divulgação.

Fronteiras imprecisas, corpos estrangeiros e livre circulação de mercadorias

As fronteiras se turvam entre vida afetiva e trabalho. No sofá de casa, o herdeiro segura o controle do videogame com uma mão e abraça a parceira/brinquedo sexual com a outra, ele oferece seu cigarro à faxineira com a mesma naturalidade com que sugere um trago à prostituta depois do sexo: a intervenção gerencial dos pais chega para redefinir (à força) as fronteiras que a livre circulação de serviços e mercadorias quase nos fez esquecer. No avião, a caminho de Las Vegas, cada classe tem já seu lugar muito bem delimitado na aeronave (e os patrões rechaçam qualquer tentativa de aproximação por parte dos subalternos).

Baker parece navegar com admirável habilidade o tênue limiar entre uma fiel representação das condições históricas de seus personagens e um endosso acrítico das condições ali encontradas — atendo-se ao primeiro ponto sem ceder às sedutoras armadilhas ideológicas do segundo. O filme subjetiviza e toma lado. A esse respeito, é muito clara a cena na escada do avião: a câmera se encontra no chão, mesmo nível de Anora e Igor, enquanto a patroa se encontra mais acima, próxima à porta de seu jatinho particular. Sua posição é junto daquele ser humano que é tido socialmente, muitas vezes, como puro corpo-objeto. Com a exceção de alguns raros deslizes — como a duração talvez demasiadamente longa do segmento intermediário de sua narrativa —, o diretor parece sempre articular uma mise-en-scène rica em camadas interpretativas (feita por precisas escolhas de enquadramento, como na cena do confronto entre a matriarca russa e Anora, tendo Igor sempre atrás de si, dentro de quadro) e singelos detalhes figurativos (como o constante brilho nos negros cabelos da protagonista).

Em um horizonte sociopolítico de infinitas crises e de uma angustiante atrofia imaginativa dos atuais campos progressistas, parecem muito bem-vindos os raros esforços artísticos com alcance considerável de público dedicados a retratar e clarear, como alude a etimologia do nome da protagonista, a atual complexidade de nossa condição histórica. É preciso fazer jus a esse brilho, sutil farol expressivo, que talvez possa nos orientar na escuridão da tormenta que ora atravessamos.

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