Enviei o ensaio “O Direito à Literatura”, de Antonio Candido, para o amigo Cícero César, professor de literatura. César respondeu com o belo texto que vai abaixo a respeito do grande pensador.
No final do texto, segue o link do ensaio que se transformou em mote para o texto do professor, que é colaborador do Bem Blogado na coluna “A César o que é de Cicero”.
Mas este texto aqui é um extra – e que extra! -, uma vez que a coluna do infatigável César é publicada aos sábados (Washington Araújo).
Por Cícero César, professor, escritor, mestre e especialista em Literatura Cícero César Sotero Batista.
De Antonio Candido (1918-2017) tudo se aproveita. No campo da escrita, estamos diante de um dos nossos maiores críticos literários. Saltam aos olhos a fluidez do texto, a clareza ímpar da exposição, com cada palavra em seu devido lugar, sem afetação, sem nenhuma sombra de verniz retórico.
Vistas em conjunto, tais características contribuem para ampliar o número de leitores que interessam por literatura e pelos assuntos que a literatura pode tocar, pois o autor é um daqueles escritores que sabem redigir textos legíveis de assuntos que podem embananar o escritor de tão complexos que são.
O resultado é que, desta maneira, o leitor, ainda que leigo, pode se interessar também pelos assuntos da literatura, deixando de vê-los como assuntos que não lhe dizem respeito, que estão fora de sua compreensão do mundo.
Esta elegância de estilo também faz parte do homem. Nas fotografias, Antonio Candido aparece sempre muito elegantemente vestido. Como se sua imagem correspondesse à imagem do professor tradicional, em uma época em que o zelo da escrita se associava ao zelo do comportamento social como um todo – que inclui falar, se vestir e se relacionar socialmente.
Neste aspecto, estamos diante de um professor “tradicional”, da imagem clássica de um professor universitário. Com a diferença que, ao percorremos sua obra, entre tantos aspectos notáveis, percebemos que lhe falta aquele ranço de literatice que transforma a literatura em assunto difícil, inalcançável para os leigos, que, por sua vez, em sua surda revolta, viram as costas para o que a literatura tem de melhor, que é a capacidade de investigar a sociedade e, em última análise, a humanidade.
Quando falece um(a) autor(a) de importância, é frequente ler nos jornais uma série de publicações a respeito do legado que ele(a) nos deixa. A relevância social que ele(a) possui faz com que o momento de perda se transforme em um momento de balanço, de uma análise ainda que sucinta da contribuição que sua reflexão tem para iluminar a realidade brasileira.
Os jornais de grande circulação do país informaram, na edição de sexta-feira, dia 12 de maio de 2017, que o professor universitário e crítico literário Antonio Candido tinha falecido, aos 98 anos, que tinha sido casado com Gilda de Melo e Souza, também crítica brilhante, e que deixava três filhas.
Como sábado é o dia dos suplementos literários, restava aguardar as edições de sábado para saber o que os jornais falariam de Antonio Candido. Em uma consulta ao site do jornal Folha de São Paulo[1], além de imagens de arquivo, observam-se artigos, assinados, girando em torno dos seguintes eixos:
1) a nota oficial da família;
2) um resumo da vida e obra do ponto de vista da militância política e, por que não dizer, estética;
3) a sensação de perda de uma de nossas maiores referências literárias, de um dos grandes que poderia se ombrear com autores que interpretam o Brasil como Sérgio Buarque de Holanda, Gylberto Freire e Caio Prado Júnior.
A edição de O Globo do dia 13 de maiode 2017[2] engrossa o coro a respeito da importância de Antonio Candido, ao afirmar que o autor tinha contribuído para “decifrar a identidade nacional por meio do estudo da literatura”, abrindo espaço para as considerações de praxe acerca da importância de sua obra e para um documentário “inédito” que, salvo engano, ainda pode ser assistido na integra pelo YouTube.
Isto é, o documentário 3 Antonios e um Jobim (1993), dirigido por Dodô Brandão, é inédito, por não ter sido exibido em salas de cinema; mas o filme, ironicamente, pode ser visto por meio de cópias ilegais do YouTube. O que parece ser uma forma a mais para comprovar a tese segundo a qual o Brasil não é para iniciantes.
Finalmente, é importante salientar que o suplemente literário, outrora tão importante, parece ter sido reduzido à publicação de pequenas resenhas e a anúncios de novidades literárias ou a de comentários sobre livros fora de circulação. Não nos cabe, nos limites deste artigo, uma explicação mais precisa das causas que levaram o jornal a tal triste enxugamento, restando-nos comentar, no calor da hora, um de seus efeitos: a literatura enquanto assunto nacional parece ter deixado de ser pão diário dos leitores.
Não podemos nos esquecer desta lição de Antonio Candido: é preciso ler a obra quantas vezes for necessário. Isto quer dizer que é a leitura da obra o passo decisivo para sua intepretação. Muitas vezes, em alguns trabalhos acadêmicos, observa-se uma preocupação excessiva com o referencial teórico, como se ele, por si só, garantisse a qualidade do trabalho que está sendo produzido.
De fato, sem referencial teórico não se faz um trabalho acadêmico e muitas das vezes o objetivo do trabalho passa em por em perspectiva visões que são complementares ou discordantes, a depender do caso.
Entretanto, pode-se ler a afirmação sobre a necessidade de se ler atentamente uma obra, quantas vezes for necessário, de outra maneira, o que salientará uma das grandes preocupações de Antonio Candido: a salvaguarda da literatura nacional.
Deve-se ler a literatura brasileira reconhecendo seus pontos fortes, mas também sem o ufanismo exagerado que é também tão típico entre nós.
É preciso que se compreenda a questão literária de diversas perspectivas, como um sistema em que estão em funcionamento uma relação em que mutualmente se influenciam autores, obras e público.
Por isso, Antonio Candido muito se preocupava com a formação de professores que fossem bons leitores, leitores fortes, leitores críticos. Daí sua preferência em falar para um público composto de estudantes de graduação, se entendo bem, em vez de se restringir ao público da pós-graduação.
Creio que a afirmação acima fique mais clara à medida que se discute que a Faculdade de Letras, como qualquer instituição de ensino superior, é palco de grandes disputas políticas e de enormes vaidades pessoais. É palco, em suma, de um jogo de poder, de diversas correntes que podem ou não entrar em conflito, para dizer o mínimo.
Quando Antonio Candido, reconhecidamente um grande crítico, dá palestras a um público ainda em formação, na verdade, ele está sendo coerente com a sua trajetória humanista de professor.
Há em Antonio Candido, como em tantos outros grandes críticos de literatura, uma forte preocupação moral, pois mudanças sociais profundas precisam de práticas também profundas.
Há uma pergunta muito pertinente a esse respeito que agora exponho: “Então, quem ensinará aos professores?” A minha resposta é: professores como Antonio Candido, que enxergam o ensino de literatura como um direito de todos – não como um privilégio de poucos, que, em grande parte, usam a literatura e a filosofia como uma espécie de verniz social, como um assunto sobre o qual não se pode ser ignorante, mas sem tocar nas questões fundamentais do que pode significar a literatura.
Quais são os livros para aqueles leitores que gostariam de ler alguns comentadores de Antonio Candido? Por motivos de urgência, citarei os títulos que tenho à disposição na minha biblioteca.
Trata-se obviamente de uma lista que não se pretende exaustiva, mas que pode vir a calhar ainda assim, uma vez que se trata de nomes que, creio, figura em qualquer lista de comentadores de Antonio Candido.
Destaco: 1) Antonio Candido: a palavra empenhada (1994), de Celia Pedrosa, que comenta os valores estéticos, teóricos que fazem de Antonio Candido um mestre entre os mestres;
2) Sequências Brasileiras (1999), de Roberto Schwarz, que dedica a primeira parte do livro a uma interpretação das ideias principais de Antonio Candido;
3) Textos de intervenção (2002), de Vinicius Dantas, que se divide em dois volumes: o primeiro é uma antologia de textos, de origem diversa, de Antonio Candido, o que contribui para se dar uma ideia do fundamental escritor que ele foi; o segundo, uma biografia de Antonio Candido que é também um índice remissivo, pois nele é possível se encontrar onde as obras foram originalmente publicadas;
4) Literatura e Sociedade (2005), livro de ensaios organizado por André Bueno, em que é possível encontrar um ensaio que Wellington Pereira escreve sobre Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, livro fundamental de Antonio Candido que trata do Arcadismo e do Romantismo da perspectiva do sistema autor-obra-público; 5) De pedra e de carne (2012), de Marcos Pasche, que escreve uma resenha sobre o livro de Haroldo de Campos O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira (2011), que tem como objetivo incluir a obra de Gregório de Matos, poeta barroco, no cânone da literatura brasileira.
Afora as intenções polêmicas, o livro de Haroldo de Campos é um exemplo entre outros de que os grandes se leem e bem, o que me parece ser um ponto a mais para a tese que Antonio Candido levantou sobre a importância de estar em funcionamento o sistema autor-obra-público.
De certa maneira, a polêmica entre grandes críticos é bem-vinda, necessária e inevitável. Entretanto, não me cabe aqui me alongar muito nesta polêmica, bastando-me afirmar que há e haverá espaço para revisões de qualquer ordem e que não devemos permitir que uma leitura crítica seja considerada definitiva, pois afinal a crítica ela mesma sofre os efeitos de seu tempo.
Disse acima que uma das lições de Antonio Candido que mais me marcaram diz respeito à leitura que devemos fazer das obras-tutores.
Creio que o mesmo pode ser aplicado no que diz respeito à crítica, querendo afirmar com isso que se deve preferir a leitura dos originais à leitura de comentadores, por mais importantes que sejam, dito de outra maneira, é preciso ler a obra-tutor e sua fortuna crítica com o mesmo entusiasmo, em vez de simplesmente tentar uma leitura a fórceps da obra-tutor, para que a teoria que se justifique a teoria que se adotou.
Por sorte, enquanto eu fazia a minha pós-graduação, nos meados dos anos 2000, os livros de Antonio Candido foram republicados, poupando-me do esforço de procurá-los em sebos, virtuais ou não, ou em bibliotecas públicas.
Diga-se de passagem, é possível se medir a qualidade de uma biblioteca a partir da atualização constante de seus títulos. Outra ressalva, atualizar não significa necessariamente comprar os livros mais recentes, pois há muitos “títulos” de clássicos sem os quais não podemos desenvolver bons trabalhos.
Dito isto, é com muito prazer que lhes digo, caros leitores, que muitas das obras de Antonio Candido fazem parte do acervo da nossa biblioteca das FIC, restando perguntar aos bibliotecários se elas estão disponíveis para empréstimo ou não.
A exemplo do que fiz a respeito da fortuna crítica, citarei, por questões de urgência, os livros de Antonio Candido de que disponho na minha biblioteca. Não gostaria que tal gesto fosse tomado como exibicionismo de minha parte, mas como um dos deliciosos ossos do ofício da nossa profissão. Estudar literaturas implica a compra de livros e, se possível, sua eventual leitura, uma vez que os livros, pelo menos até hoje, não se leem sozinhos, havendo a necessidade de um interprete ou de um mediador.
Destaco: 1) Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos 1750-1880 (2006), que é um dos clássicos dos estudos brasileiros;
2) Iniciação à literatura brasileira (2007), uma versão resumida do Formação, escrita para o público estrangeiro, com o importante acréscimo da discussão sobre o Barroco, muito provavelmente devido à polêmica com Haroldo de Campos;
3) Tese e antítese (1978), livro de ensaios que contém “O homem dos avessos”, artigo que versa sobre o romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa;
4) A educação pela noite (2006), que contém o artigo “Poesia e ficção na autobiografia”, que mostra as estratégias narrativas de memorialistas como Pedro Nava;
5) Vários escritos (2004), em que há os artigos “Esquemas de Machado de Assis”, “Inquietudes na poesia de Drummond” e o “Direito à Literatura”;
6) O discurso e a cidade (2004), que contêm o artigo “Dialética da malandragem”, em que Antonio Candido consegue enxergar o funcionamento da sociedade brasileira do primeiro reinado a partir da leitura do romance Memórias de um Sargento de milícias, de Manuel de Antonio de Almeida, e o artigo “De cortiço a cortiço”, em que Antonio Candido examina a acumulação capitalista à brasileira, em fins do século XIX, a partir do romance O cortiço, de Aluisio de Azevedo
Haveria outros títulos, logicamente, mas não quero me estender. Talvez uma quantidade de livros de um mesmo autor afaste mais os leitores do que os aproxime do assunto em questão, uma vez que, no nosso tempo, uma das questões mais urgentes diz respeito ao tempo – muito embora se possa dizer que se dedique mais tempo do que o necessário a conversas pelas redes sociais do que se deveria.
Porque, não é difícil se chegar à conclusão de que há uma quantidade enorme de livros que são indispensáveis para uma formação à altura dos nossos desafios. O que implica uma seleção, sem a qual ficaremos enfeitiçados pela floresta insidiosa criada a partir das grandes obras, sem levarmos de volta à aldeia o tesouro que procurávamos.
Entretanto, lutemos. Insidiosa que seja, é preciso desvendá-la. Como um professor meu disse certa em uma palestra sobre o centenário de falecimento de Machado de Assis, “Sem crítica, celebração é conformismo”. Talvez essa fatídica constatação devolva a força aos professores, estas velhas tartarugas que ainda têm muito a dizer.
[1] Entre alguns textos do site, destacam-se para os propósitos deste artigo:
“Família de Candido homenageia a vida do crítico literário em nota”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1883536-familia-de-candido-homenageia-a-vida-do-critico-literario-em-nota.shtml Acesso em: 22 de abril de 2018.
“Por dois anos, Candido realizou ‘brigada ligeira’ no folha”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1883496-por-dois-anos-candido-realizou-brigada-ligeira-na-folha.shtml Acesso em: 22 de abril de 2018.
“Com a morte de Antonio Candido, clichê de ‘fim de uma era’ faz todo sentido”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1883464-com-a-morte-de-candido-cliche-fim-de-uma-era-faz-todo-sentido.shtml Acesso em: 22 de abril de 2018.
“Candido contou sobre o poder da literatura diante da morte” Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1883438-candido-contou-sobre-o-poder-da-literatura-diante-da-morte.shtml Acesso em: 22 de abril de 2018;
“Obra de Antonio Candido convidava leitor a amar literatura brasileira”. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1883384-obra-de-antonio-candido-convidava-leitor-a-amar-literatura-brasileira.shtml Acesso em: 22 de abril de 2018.
[2] “Antonio Candido tinha contundência com elegância” Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/artigo-antonio-candido-tinha-contundencia-com-elegancia-21334566 Acesso em: 22 de abril de 2018.
O direito à literatura – Antonio Candido