Ao Brasil, com amor, verdade, memória e justiça

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Por Jamil Chade, UOL

Carta às instituições democráticas brasileiras,




No final de janeiro de 2019, eu me sentei ao lado da mesa do clã Bolsonaro, num café da manhã no luxuoso hotel no qual sua delegação se hospedou em Davos, aqui na Suíça. Entre os vários absurdos que escutei, um deles me deixou duvidando se de fato aquela era a delegação que comandava um dos maiores países do mundo.

O filho do então presidente, o deputado, perguntou a quem estava naquela mesa enquanto tentava usar as redes sociais:

“A palavra “bilionário” é com ou sem a letra “H”?

Não sei exatamente onde ele pensava colocá-la. Mas resposta de alguém na mesa foi ainda mais surpreendente: “Veja se aparece a cobrinha vermelha do corretor”.

Aquele crime à língua de Guimarães Rosa, Conceição Evaristo, dos meus amigos Itamar Vieira Junior, Juliana Monteiro e Eliane Brum e tantos outros escritores que eles jamais leram me acendeu um sinal de alerta: do que seriam capazes aquelas pessoas?

Descobrimos da pior forma possível, enterrando nossos irmãos, pais, amigos e, por pouco, nossa tão frágil democracia.

Nesta semana, a inelegibilidade de Bolsonaro abriu aquela esperança típica dos sonhadores de que isso significará o fim da sua carreira política, usada como plataforma para interesses pessoais.

Mas escrevo esta carta para dizer que isso não me basta, ainda que possa ser uma decisão importante para a saúde das instituições nacionais.

Eu, particularmente, vou cobrar três outros aspectos: verdade, memória e justiça.

Quero a verdade, para que a história recente do Brasil não se repita. Nem como tragédia e nem como farsa.

Verdade, essa palavra traduzida na capacidade de a população saber o que de fato ocorreu enquanto seu grupo usou o poder para se apoderar de instituições de estado. O que de fato foi considerado quando foram tomadas decisões que resultaram na morte de pessoas. O que estava em jogo quando, debochando do sofrimento de milhões de pessoas, buscava-se apenas a reeleição.

O direito à verdade é o direito à integridade de uma pessoa, a saber o que ocorreu diante da angústia instalada. Num cenário pós-guerra, as famílias querem a verdade sobre o destino dos corpos de seus filhos, quem disparou a bala, por qual ideal padeceram.

No Brasil, exigimos saber por qual motivo vidas foram criminosamente abreviadas. Qual era o objetivo quando a democracia foi estilhaçada no planalto central.

Quero também preservar a memória, para que a história recente do Brasil não se repita. Nem como tragédia e nem como farsa.

Para que as próximas gerações saibam exatamente o que ocorreu no Brasil entre 2019 e 2022, para que os livros de história tragam o isolamento que se estabeleceu para o país no mundo e para que cada cova cavada não seja a história de uma inevitabilidade.

Há sete décadas, a Alemanha destina milhões de euros para se desnazificar. Todos os dias. E parte desse trabalho é conduzido nas escolas e na conscientização do que representam as ideias que chegaram ao poder, nos anos 30.

A busca pela memória promove o debate, sem tabus. E, sem atalhos, esse é o caminho para promover uma reconciliação e fechar feridas.

Mas isso tampouco basta.

Quero e vou exigir ainda justiça, para que a história recente do Brasil não se repita. Nem como tragédia e nem como farsa.

Justiça, que Freud chamava de “o primeiro requisito da civilização”, não é erguer um picadeiro para que revanche seja feita. Justiça é, sobretudo, um reconhecimento da existência de vítimas e a proteção do futuro.

A democracia não morre apenas no escuro. Ela também morre em plena luz do dia, em publicações obscuras no diário oficial, em invasões de terras, na circulação de um vírus, na propagação do ódio, no uso da mentira como estratégia de poder.

E ela morre quando não lidamos com seus detratores e quando a impunidade vence.

Desta vez, a anistia não tem lugar.

Não estamos falando sobre o passado. Mas sobre a construção do futuro.

No dicionário da democracia, os conceitos de memória, verdade e justiça estão todos no mesmo capítulo. Aquele escrito com sangue e que tem como objetivo resgatar sociedades mergulhadas num ciclo de violência, recolocando num longo caminho de uma cultura da paz.

Já a letra “h” que eles procuravam, bem… sugiro guardá-la para usar na palavra “humanidade”, construída todos os dias com direitos e dignidade.

Saudações democráticas,

Jamil Chade

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